13 fevereiro 2011

Haddock ou Gulnara? Personagens de Hergé são mais divertidos que os de Assange

No meu artigo de hoje publicado no Aliás, suplemento de domingo do Estadão, uma comparação entre as personagens das aventuras de Tintim, e as reveladas pelos vazamentos do WikiLeaks, de Jules Assange.

Por alguma razão, os artigos do Aliás não aparecem no portal do Estadão na internet (apenas na edição digital). No post seguinte, você pode ler a edição original do artigo, antes dos cortes que foram feitos por motivo de espaço.

Usei para o artigo o livro Tintin - The complete companion, de Michael Farr (jornalista e tintinólogo inglês), o documentário Tintin and I, do cineasta dinamarquês Anders Østergaard, as edições das aventuras de Tintim da Cia. das Letras, e as minhas antigas, puídas, rasgadas e desbotadas edições em português de Portugal, lançadas no Brasil nos anos 60 pela Flamboyant.  As novas edições da Cia. das Letras foram traduzidas pelo Eduardo Brandão.


12 fevereiro 2011

WikiLeaks como literatura? Prefiro esperar o Tintim do Spielberg

Muito do furor sobre a divulgação das mensagens reveladas pelo WikiLeaks estão relacionadas ao suposto estrago que a exposição de material altamente sigiloso poderia causar nas relações internacionais. O vice-presidente americano Joe Binden chegou a denunciar Julian Assange como um “terrorista high-tech” e não faltou quem pedisse seu indiciamento por traição, espionagem e conspiração.

No entanto, como notou Ken Silverstein, autor de Turkeminscam, um livro sobre os lobbys políticos de Washington, o material do WikiLeaks vale mais como literatura, um repertório de detalhes sobre a vida mundana dos muitas vezes patéticos personagens da política e da diplomacia. “As mensagens secretas revelam mais sobre a vaidade humana do que sobre o balanço do poder no Oriente Médio”, escreveu o jornalista, que se deu ao trabalho de ler minuciosamente os relatórios, atrás de material para seus próximos livros.

Enfim o material vazado pelo WikiLeaks tem muito mais potencial para aparecer numa novela de um candidato a Graham Greene ou Patricia Highsmith, do que a servir de munição para um Bin Laden cibernético.

Em outras palavras: os personagens revelados pelo Wikileaks não tem estatura moral para encenar sequer uma aventura de Tintim, o jovem repórter das histórias em quadrinhos de Hergé que chegarão ao cinema pelas mãos de Steven Spielberg até o final do ano. Haveria entre as personagens reveladas nos telegramas sigilosos alguém a altura de Madame Castafiore, do Capitão Haddock ou do Professor Girassol? Duvido. Aláis, além da extraordinária semelhança física, Tintim e Jules Assange tem esta persistência de tentar estar sempre ao lado do bem – embora um problema universal do ser humano seja que nem sempre sabemos de que lado o bem está. As personagens de Hergé, aliás George Remis, o desenhista belga que levou Tintim muito além do mundo dos quadrinhos, estão bem acima, em caráter, humor e humanidade, do que as do WikiLeaks.

Que tal  Gulnara Karimova, poderosa primeira filha do presidente Uzbequistão, Islom Karimov? Os vazamentos do WikiLeaks revelaram que “ela fez aparecer na mídia uma série de artigos promovendo suas virtudes”. Bem, bastaria acessar a Wikipedia, a enciclopédia pública prima do Wikileaks, para ler que a moça é uma self-promoter que se define como “ativista social, empresária, designer de moda, cantora e diplomata”. Atualmente, ela ocupa o nada desprezível cargo de Embaixadora Extraordinária e Plenipotenciária na Espanha. Enfim, a moça faria qualquer membro da família Sarney corar de vergonha.

Mas se é pra saber história de clã político, com nepotismo e tudo mais, fico com o Maranhão, não preciso do WikeLeaks: deixaria de lado a vida de Gulnara Karimova (que segundo os diplomatas americanos “conseguiu se meter em praticamente todos os negócios lucrativos do país, das telecomunicações à distribuidora local da Coca-Cola"), e aguardaria os muito mais interessantes personagens das aventuras de Tintim.

Não que Hergé nunca tenha se interessado pelo submundo político dessa terra de ninguém que parece ter caracterizado a Europa do Leste desde todo o sempre, uma zona cinzenta até mesmo pelos critérios da geografia, já que suas fronteiras costumam mudar incessantemente com o tempo e a história. Em O Cetro de Ottokar, por exemplo, o jovem repórter e seu valente e inseparável cachorro Milu salvam a Syldavia, um  obscuro país escondido entre a Bulgária e a Hungria, de cair nas mãos dos fascistas. Escrito antes da Segunda Guerra Mundial, a aventura antecipava a anexação da Áustria pela Alemanha nazista – só que com um final feliz. Em uma das últimas cenas, Tintim (acompanhado de Milu) é recebido em palácio, a pompa e circunstância enfatizadas pelo típico realismo dos quadrinhos de Hergé em um ambiente altamente sofisticado – e que fariam Gulnara Karimova babar de inveja.

Mas não é esta aventura que Spielberg escolheu para iniciar sua relação com as aventuras do jovem repórter. Pelo menos não por enquanto, embora o cineasta já tenha comprado os direitos para novas incursões no mundo de Tintim, que serão também um outro marco na sua carreira: serão suas primeiras produções digitais. A primeira delas, que deve estrear em outubro, é a formidável trilogia formada por O caranguejo das pinças de ouro, O segredo do Licorne, e O tesouro de Rackham, o terrível. 

Trata-se da história (originalmente distribuída em três livros) onde aparecem pela primeira vez dois personagens: o Capitão Haddock e o Professor Girassol. O primeiro, um experiente lobo do mar, com seu temperamento irascível, seu conhecimento enciclopédico de impropérios, e um problema com bebidas. Já o Professor Girassol, surdo como uma porta, tem a habilidade de guiar os amigos com sua incontestável genialidade, embora raramente entenda uma única palavra do que lhe dizem ou do que está acontecendo. O capitão e professor passariam então a fazer parte integral da família, aparecendo na maior parte das histórias de Tintim (junto com os irmãos gêmeos, os tão inseparáveis quanto incompetentes Dupont e Dupond).

As circunstâncias políticas também marcam o contexto da aventura, embora pelo negativo: com a Bélgica ocupada pelos nazistas, Hergé teve que inventar uma história que fugisse de qualquer possível referência que pudesse ser feita com a situação política da época, daí a opção por uma história na qual Tintim e seus amigos partem em busca do que seria o tesouro perdido por Sir Francis Haddock, o grande navegador e antepassado do Capitão Haddock.

Não há neste primeiro Tintim que Spielberg escolheu para filmar nenhuma referência à política. É bom porque a questão do racismo no Tintim não passa de um mal entendido. É verdade que nas primeiras histórias o repórter revela um racismo ingênuo.  Ma na sua fase madura, em que em parte em reação as críticas, mas em parte também a sua trajetória de vida, e seu amadurecimento intelectual, Hergé se torna mais e mais um relativista, mostrando as culturas não-ocidentais sem os estereótipos racistas. As aventuras de Tintim no país dos soviets é típico da literatura anti-soviética de antes da guerra. E Tintim no Congo é francamente racista e colonialista. Mas Hergé mostrou que entendeu os erros que cometeu ao longo da vida, e os corrigiu. sua obra oferece assim uma interessante aula sobre a evolução das idéais raciais. “Gosto muito do Tintim”, diz a antropóloga Lilia Schwarcz, professora da USP. “Penso que os primeiros livros, sobretudo aqueles que se passam na África são profundamente racistas. Mas eles espelham a ideologia em que Hergé vivia, e um contexto em que as teorias raciais eram ainda dominantes”. O processo de mudança operado no próprio escritor ao longo da suas aventuras, do racismo das primeiras ao politicamente correto das posteriores, é do maior interesse, diz Lilia, especialista em estudos raciais. “Ele acompanha as oscilações nas teorias do período. Vale a pena ler os livros, portanto, até como documento de época; além deles serem grande arte e diversão”.

As personagens de Hergé extrapolaram em muito o mundo dos quadrinho e capturaram a imaginação de jornalistas, como o tintinólogo inglês Michael Farr, autor de Tintim – The complete companion, a mais autorizada fonte de informações sobre o assunto, de documentaristas como o dinamarquês Anders Høgsbro Østergaard, autor de Tintim and I, feito de uma série de entrevistas colhidas com o desenhista no início dos anos 70, e de antropólogos. Já vendeu milhões e milhões de exemplares, em dezenas de línguas. Agora, atraiu também a atenção de Steven Spielberg, uma glória que não está a altura dos personagens de Assange. Na cerimônia do Oscar do ano que vem, garanto que Tintim e seus colegas serão convidados de honra. Gulnara Karimova não.

08 fevereiro 2011

Brecht e o bigode de Hitler

Pode-se dizer o que for a respeito de Bertold Brecht. Mas o homem tinha um jeito com as palavras. Mais que isso, ele enxergava coisas óbvias, mas que passam desapercebidas para a maioria dos mortais. Um exemplo célebre é sua observação sobre Hitler:  "Um bigode tão pequeno... Para uma boca tão grande..."

Com uma simples ironia, Brecht sintetiza a contradição fundamental deste sinistro personagem, sobre quem muito já foi dito. Mas jamais tão poucas palavras disseram tanto.

Personagem contraditório também foi o próprio Brecht. Alex Ross, em seu O resto é ruído, conta que ele não deu crédito a algumas parcerias com Kurt Weill. E era dado a arroubos de veleidade. Conta-se que durante o período em que ficou exilado na Califórnia, escrevendo roteiros de filmes B para Hollywood, ao se identificar num hotel como Sr. Brecht, o porteiro pediu para que soletrasse o sobrenome, o que não é nada fora do comum, até mesmo porque o "echt" gutural típico do alemão não existe em inglês. "Como?", teria se exaltado o dramaturgo. "Você não sabe como se escreve meu nome? Pois saiba que ele está escrito ao lado do de Goethe e de Heine, entre os grandes nomes da literatura alemã..." Enfim, nada modesto nosso amigo.

03 fevereiro 2011

O Lada espacial e o meu

No domingo saiu um artigo que escrevi no caderno Aliás, do Estadão, chamado O Lada espacial que apavorou os EUA. Era sobre o Sputnik. Um leitor mandou um e-mail reclamando que fui injusto com a ciência espacial soviética. O leitor tem razão. O erro, no entanto, não foi meu: provavelmente foi um exagero do editor ao bolar na pressa o título. Mesmo porque, confesso: eu tive um Lada...

Não que o Lada fosse ruim, apenas que, vamos dizer assim, seu projeto não estava nada adaptado ao clima tropical. Na Sibéria, acredito, talvez ele tivesse se dado muito bem. Até mesmo na maior parte do território russo, onde a temperatura média é de zero graus centigrados.

O problema é que meu artigo tocou justamente neste nervo exposto: o aquecimento...

O Lada era como o socialismo soviético: bom na teoria, mas não funcionava na prática. Pelo menos não na do verão paulista de 1992, quando comprei um. O presidente de então havia dito que os carros nacionais eram umas carroças velhas. Acreditei. Comprei um usado, vermelho. O carro fazia muito sucesso na época entre taxistas porque já vinha com caixa de ferramentas no porta-mala. Mal sabiam eles quão útil seria...

Logo de saída foi dando problema de super-aquecimento: era a ventoinha, claro. Na Sibéria, ninguém sequer notaria. Mas no verão paulista ela fazia falta. Fui a concecionária e fui muito bem atendido, com cafezinho, tapinha nas costas e tudo mais. Enquanto isso, na oficina, os técnicos faziam uma gambiarra secreta: ao invés de substituir a ventoinha defeituosa tinham apenas parafusado uma hélice no eixo do motor. Ventoinha nova, aparentemente, só depois do próximo plano quinquenal onde anotariam: "Mandar 48.994 ventoinhas para Brasil".

Outro problema foi o do super-aquecimento, desta vez interno: o botão, que tinha apenas duas posições, "dacha" e "sibéria" quebrou no sibéria. Enfim, o carro aquecia por dentro, aquecia o motor, e a situação só piorava em congestionamentos. O carro fora projetado para a Sibéria onde qualquer aquecidinha é milagre de São Petersburgo. Era outro o santo. Era São Paulo. Era verão...

Outra coisa que chamava atenção era o cheiro. Sim, um certo cheiro de peixe. Era como se, ao trazê-lo da Rússia, o carro tivesse caído do container no canal de Santos, e nunca mais tivesse sido lavado. Muito depois, lendo o relato do correspondente do Financial Post no leste europeu sobre a experiência dele com Ladas e Traubas é que entendi. No início dos anos 80 tomou o poder no Perú um grupo de militares de esquerda. A União Soviética não só apoiava o regime peruano como ainda comprava sua produção de peixe. Zelosos da necessidade imperiosa da produtividade, os russos aproveitavam até os resíduos para fazer cola de farinha de peixe, e a utilizavam para a colagem de estofamento de veículos. Era daí que vinha o cheiro.

Enfim, com a abertura comercial a indústria nacional reagiu e acho que alguém chegou a dizer "carroça por carroça, fique com a nossa" de forma que troquei o Lada por um Gol. Tropicalizado.

Um amigo publicitário chegou a bolar um slogan, uma asinatura como tem a Nike, a Sony, e todas as grandes marcas internacionais: "It's a Lada". Não sei porque não pegou.

Por isso, compartilho a revolta do leitor com o título e o espirito da matéria, e venho por meio desta me penitenciar, e me denuncio a mim mesmo como um mesquinho que trocou seu heróico carro soviético pelo falso conforto burguês por uma versão pós-tropical de um carro produzido por  uma multinacional alemã. Por muito menos que isso, muita gente boa, inclusive o coronel Sergei Korolev que projetou o R-7, o foguete que colocou o Sputnik em órbita, foi parar na Sibéria.