18 dezembro 2006

Uma certa Aracy, um chamado João

A Folha publicou na segunda-feira, 18 de dezembro, meu artigo sobre Aracy Guimarães Rosa. Como o texto foi editado, reproduzo aqui a versão original. (Veja também fotos inéditas no FotoBlog)

“A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Com esta simples epígrafe, começa uma das maiores epopéias da história da literatura mundial, Grande Sertão: Veredas. No entanto, ao se comemorar os 50 anos da publicação do livro mais importante de João Guimarães Rosa, pouco – ou nada – se falou sobre a mulher que teve um papel fundamental na vida do maior escritor brasileiro do século 20, comparado a Thomas Mann, Jorge Luís Borges e outros grandes mestres.

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, hoje com 98 anos, foi a sua segunda mulher. Mas enquanto escritor maduro, foi sua grande e única companheira: ficaram juntos 30 anos. Ambos haviam sido casados antes, e os dois tinham filhos do primeiro casamento. Mas foram uniões que duraram pouco. Ele casou-se pela primeira vez, em 1930, aos 22 anos, médico recém-formado, com um grande talento para as letras, mas que ainda não havia florescido plenamente.

Aracy, que viria a conhecer em Hamburgo, em 1938, foi a sua grande inspiradora, personagem, companheira, e interlocutora privilegiada durante o período mais importante da sua vida e obra. Enfim, foi sua Simone de Beauvoir. “Aracy viveu 30 anos com ele, desde o primeiro livro importante, Sagarana, até a sua morte”, lembra Neuma Cavalcante, professora da Universidade Federal do Ceará. “Ela lia, opinava, sugeria, discutia, participava ativamente da obra. De certa forma ela é co-autora. Tanto que o Grande Sertão não é dedicado; é dado: ele doou o livro à Aracy, como diz a epígrafe. Isto é muito significativo”.

Se Aracy teve papel tão importante na vida de um dos maiores nomes da literatura mundial, porque sua imagem está tão apagada neste ano em que se comemora o cinqüentenário da saga de Riobaldo e Diadorim? “Ela deveria ser mais lembrada. A questão é que eles eram discretos na vida pessoal. Ela ficava afastada dos holofotes enquanto ele aparecia. Mas o papel dela não pode ser subestimado”, diz Neuma Cavalcante. Discreta, sem jamais ter caído na tentação de se promover por ter sido quem foi, Aracy paga hoje o preço do esquecimento. Sua influência sobre o escritor tem sido negligenciada pela crítica, pelos historiadores da literatura, e pela mídia.

Há quem acredite que ela serviu de inspiração para Diadorim, a personagem do Grande Sertão. Aracy tinha certamente algo de Hannah Arendt, a extraordinária filósofa alemã, autora de Origens do totalitarismo e A condição humana, e que fez da própria vida um ato de luta contra as trevas. Aracy desafiou o nazismo, o Estado Novo de Getúlio, e a ditadura militar brasileira. Além disso, era culta, poliglota, e segundo alguns, uma das mulheres mais atraentes de seu tempo. “Não me admira em nada que Guimarães Rosa tenha se apaixonado por ela”, diz José Gregori, presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos, e ex-ministro da Justiça. "Era uma mulher de uma rara beleza, competente, e praticava um tipo raro de solidariedade". Enfim, uma personalidade a altura do espírito inquieto do grande escritor.

“Rosa praticava aquilo que os alemães chamam de ‘amizade combatente’: atuava a favor do amigo, sem esperar que este lhe pedisse ajuda”, lembrou o jornalista e crítico literário Franklin de Oliveira. Aracy também. Em 1937 ela salva judeus do nazismo. Em 1964, já no Rio, junto com o escritor, tentam esconder o próprio Franklin de Oliveira, procurado pelos militares. Em 1968, o escritor já morto, Aracy esconde o cantor e compositor Geraldo Vandré, caçado pela ditadura pós-AI-5.

“Aracy era a grande personagem da vida dele”, diz Neuma Cavalcante, que está escrevendo sua biografia (com Elza Mine, professora do departamento de Língua e Filologia Portuguesa da USP). O livro, que deve ser publicado no ano que vem, é baseado no seu acervo, incluindo recortes de jornais, anotações e, principalmente, a correspondência entre os dois.

1937. Ele, já separado da primeira mulher, chega a Hamburgo como cônsul adjunto, em momento particularmente dramático: às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

“Em 1934, Rosa fez o concurso para o Itamarati, tendo conquistado o segundo lugar. Via na diplomacia um meio de conhecer o mundo, coisa que, como menino pobre, jamais poderia fazer”, conta Franklin de Oliveira, em uma introdução do Grande Sertão, que desapareceu injustificadamente das últimas edições (veja abaixo). “Seu primeiro posto na carreira foi na Alemanha, onde conheceu sua segunda mulher, que seria a companheira de toda a vida – Aracy Moebius de Carvalho, que ele tratava carinhosamente de Ara”.

Diadorim ou Hannah Arendt?

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, nascida Moebius de Carvalho, no interior do Paraná, já separada, foi para a Alemanha no início dos anos 30 morar com uma tia e o filho do primeiro casamento, Eduardo Tess. Como falava bem alemão, inglês e francês, conseguiu uma nomeação para o consulado brasileiro em Hamburgo. Acabou sendo encarregada da seção de vistos.

Quando Guimarães Rosa chega a Hamburgo, já separado da primeira mulher, entra em vigor a Circular Secreta 1.127, que restringia a entrada de judeus no Brasil – consequência do fascínio que Getúlio Vargas sentiu pelos regimes de Hitler e Mussolini, e que o americanista Jeffrey Lesser descreve muito bem no livro O Brasil e a questão judaica.

Contrariando ordens do Itamarati, Aracy cria esquemas para burlar a atenção do cônsul geral – que, de simpatizante dos judeus, subitamente se descobriu um anti-semita de primeira hora –, salvando assim a vida de muitos.

“Minha mãe resolveu ignorar a circular que proibia a concessão de vistos a judeus, achou aquilo um absurdo, e por risco e conta dela continuou a preparar os processos, à revelia das ordens do Itamarati e de seus superiores no consulado. Como ela despachava outras coisas com o cônsul geral, no meio dos papéis enfiava os vistos. Muitos judeus vinham de outras cidades mas para que os seus passaportes pudessem ser processados em Hamburgo, tinham que provar que moravam na região. Ela conseguia os atestados, e quando entravam com os papéis, já tinham esta dificuldade resolvida”.

Aracy e Rosa se conhecem e iniciam um relacionamento que perduraria até a trágica e prematura morte do escritor em 1967.

Rosa sabe o que Aracy faz, com grande risco. “Como cônsul-adjunto, ele não era responsável pelos vistos, mas sabia o que minha mãe estava fazendo. E apoiava”, diz Eduardo. “Os vistos eram assinados pelo cônsul geral”, lembra ele. Se descobertos, os dois poderiam ter tido o mesmo destino de Olga Benário Prestes, entregue por Getúlio à Gestapo. Ele, no mínimo, perderia o cargo. A cúpula do governo Vargas estava convencida de que os judeus, que Hitler queria extinguir da Europa, e que procuravam refúgio em qualquer país que os acolhesse, poderia comprometer a “boa” formação do povo brasileiro. Deveriam, portanto, ser impedidos de entrar no Brasil.

E por que ela não acatou as ordens de Getúlio, abandonando os judeus à própria sorte? “Porque não era justo”, ouvi dela uma única vez, em seu estilo reservado, como se arriscar a vida por gente que ela nem conhecia pessoalmente fosse uma atitude óbvia. Pena que muitos se esqueceram disso quando Hitler parecia ter dominado a Europa, era admirado e copiado por Getúlio, e os judeus enviados aos milhões para campos de extermínio.

O gesto heróico de Aracy recebeu dezenas de homenagens, entre as mais importantes, uma placa em seu nome no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém (veja fotos). Até há pouco, era o único nome brasileiro. Recentemente, ganhou a companhia de Luiz Martins de Souza Dantas, o embaixador em Paris durante a guerra, que também arriscou a vida salvando judeus. Aracy ganhou uma placa também no Museu do Holocausto de Washington. E foi homenageada diversas vezes pela comunidade judaica brasileira, onde é conhecida como o “Anjo de Hamburgo”.

Maria Margareth Bertel Levy, ou dona Margarida, como prefere ser chamada, e seu marido, o cirurgião-dentista Hugo Levy, já falecido, são alguns entre os judeus que Aracy ajudou a salvar. “Ela me levou pessoalmente ao navio, usando seu passaporte diplomático”, lembra. Dona Margarida e seu marido, como muitos outros judeus que moravam na Alemanha, subestimaram o perigo representado pela ascensão de Hitler ao poder. “Hamburgo tinha tradição de uma cidade liberal e imaginávamos que estivéssemos a salvo”.

“Ela foi realmente um anjo que entrou na nossa vida”, diz alguém que acompanhou o asilo de Geraldo Vandré na casa de Aracy, em 1968. “Artistas na época foram presos e sofreram muito”, diz. “Graças a Aracy, Vandré conseguiu fugir para o Uruguai sem ser molestado”. Detalhe: Aracy não conhecia o cantor e compositor. Sabia apenas que ele tinha trabalhado no filme de 1965 de Roberto Santos A hora e a vez de Augusto Matraga, baseado no conto homônimo de Guimarães Rosa, e do qual Vandré foi co-produtor, autor da trilha sonora, e ator. E que estava sendo procurado pela ditadura.

Diário de Hamburgo

Primeiro de setembro de 1939. Os alemães invadem a Polônia. Começa a Segunda Guerra Mundial. Aracy continua dando vistos para judeus, arriscando o emprego e a vida. Guimarães Rosa a apóia, e de qualquer forma, como tinham uma relação pública, teria sido de qualquer forma considerado cúmplice. A partir de 1940, a aviação britânica começa a bombardear alvos estratégicos em diversas cidades da Alemanha, entre elas Hamburgo. “Ainda me lembro do barulho das sirenes”, recorda-se Eduardo, na época ainda criança.

Guimarães Rosa mantém então um diário de guerra, ainda inédito, onde anota o terror produzido pelos aviões da RAF. “Há muitos recortes de jornais, e pela forma como os recortes estão colados, e pelos comentários, é possível ver o que está acontecendo na Alemanha no período”, diz Wander Melo Miranda, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e diretor da editora da UFMG. O livro foi preparado para publicação por dois professores brasileiros e um alemão, mas ainda não tem data prevista para publicação. “É o único diário sobre a Segunda Guerra Mundial escrito por um grande nome da literatura latino-americana”, diz Miranda. É de se prever que o "Diário de Hamburgo” , como vem sendo chamado, teria enorme repercussão na Alemanha, onde Guimarães Rosa é particularmente reverenciado.

“Não sabemos ainda se o livro poderá ser lançado”, diz Miranda. “É um trabalho bem feito, do qual temos orgulho. É um livro que interessa a tipos diferentes de públicos: historiadores, críticos literários, alemães, judeus, os habitantes de Hamburgo, e enfim, aos admiradores do escritor no mundo todo”.

Mas não é só no diário engavetado que Guimarães Rosa deixou suas impressões antitotalitárias: sabe-se hoje que ele chegou a ser denunciado na Gestapo por suas posições políticas. É o que revelaram pesquisadoras brasileiras que encontraram nos arquivos da polícia política alemã queixas então encaminhadas pela chancelaria do Terceiro Reich ao Ministério das Relações Exteriores, dando conta que o então cônsul adjunto fizera declarações contrárias ao regime de Adolf Hitler.

Por ironia do destino, Aracy, que teria tanto para contar, hoje com 98 anos, pouco se recorda. “Até os anos 90 ela ainda estava ativa, e tinha muitos amigos dos tempos do Itamarati. Mas com o tempo, foram morrendo e Aracy foi se apagando”, lamenta uma amiga.

Mas Dona Margarida, salva por Aracy, imigrou para o Brasil, e continua sua amiga até hoje, ainda lembra: “Quando fomos a primeira vez ao seu encontro, o cônsul-geral foi muito gentil. Mas subitamente, de uma hora para outra, tornou-se anti-semita. Sabendo da nossa amizade, disse a Aracy que ela estava proibida de ter amigos judeus. Ela respondeu que ele não tinha o direito de se meter na sua vida”.

Escondendo Geraldo Vandré

1968, o ano que não acabou, como definiu Zuenir Ventura. Mal refeita da morte do marido, vem o AI-5. Aracy toma parte em reuniões contra a ditadura, onde fica sabendo que Geraldo Vandré está sendo procurado pelos militares. “Um dia recebi um telefonema de alguém que se identificou como sendo a sua governanta”, diz uma pessoa que acompanhou a história, e que prefere não se identificar por razões familiares. “Disse que se precisasse de algo, ela estaria pronta a ajudar. Foi como um anjo que caiu do céu na hora certa”.

Vandré ficou escondido no apartamento onde o escritor vivera, e onde morrera um ano antes. Com vista para o Forte de Copacabana, ironicamente, Vandré acompanhava do gabinete de trabalho onde fora escrito Grande Sertão: Veredas a movimentação do exército no encalço dos perseguidos políticos da época - ele mesmo inclusive. O mais curioso é que Vandré encarnara como ninguém o jagunço do sertão nordestino na canção popular.

A paixão entre Rosa e Aracy, afinal, não é difícil de entender. Suas personalidades combinavam. Primeiro, o interesse por línguas. Ele, um poliglota rematado, como uma vez se definiu, com o humor blasé reservado aos gênios: “Falo alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração”.

Ela, além de falar diversas línguas, era bonita, educada, interessada em arte, história e literatura, e acima de tudo, uma humanista corajosa. Enfim, alguém de quem se poderia dizer o mesmo que Riobaldo no começo do Grande Sertão: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”

Aracy parece ter colocado na cabeça a idéia de que o anti-semitismo em ascensão na Alemanha era uma idéia errada. E foi até o fim apesar dos riscos.

15 de agosto de 1942. Submarinos alemães torpedeiam o navio brasileiro Baependi. No dia 31 de agosto o Brasil declara guerra à Alemanha. Diplomatas brasileiros, entre eles Cícero Dias, Cyro de Freitas Vale, além de Guimarães Rosa e Aracy, são mantidos em custódia por mais de quatro meses em Baden-Baden, e finalmente trocados por diplomatas alemães. Guimarães Rosa e Aracy embarcam para o Brasil, via Stutgart, Madri e Lisboa. Fim do Diário de Hamburgo.

Um chamado João

O casal se instala no Rio. Como não podem se unir legalmente – ainda não existe o divórcio no Brasil - se casam por procuração, no México, como era de praxe na época. Ele ainda tem cargos diplomáticos de grande importância – é nomeado, por exemplo, para a Conferência de Paz em Paris. Dedica-se cada vez mais à literatura. Em 1946 publica Sagarana. Em 1956 aparece Corpo de Baile e logo depois Grande Sertão: Veredas. “Eu era menino ainda”, recorda-se Eduardo. “Mas lembro bem dele lendo trechos em voz alta para minha mãe”. Aracy abdica da carreira diplomática: prefere ficar ao lado do escritor, cuja projeção começa ganhar dimensões internacionais. Durante o governo JK ele ganha status de embaixador (e não em 1963, como diz a Enciclopédia Britânica).

1965. Rosa é traduzido e publicado na França, Itália, Estados Unidos, Canadá e Alemanha. Depois Polônia, Holanda, Tchecoslováquia. No apartamento com vista para o mar, em Copacabana, onde ele continua retocando interminável e obsessivamente seus livros, e colecionando as edições internacionais que se avolumam, o casal recebe a elite intelectual da época: o crítico brasileiro (nascido na Hungria) Paulo Rónai; o tradutor para o alemão Curt Meyer-Clason; o crítico Willi Bolle; seu editor americano e também amigo pessoal, Alfred Knopf; o tradutor para o espanhol Angel Crespo; o crítico francês Renard Perez; o tradutor para o italiano Edoardo Bizzarri, com quem manteve riquíssima correspondência, publicada no Brasil e na Itália... Enfim, a lista é infindável.

Domingo, 19 de novembro de 1967. Três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras, o que vinha adiando há anos devido ao receio de não resistir à emoção, Guimarães Rosa brincava com a neta favorita, Vera Tess, no seu escritório. Como fazia todo domingo, Vera saiu com a avó Aracy para ir à missa ao final da tarde, na igrejinha do Forte de Copacabana. “Na volta para casa, eu levava pipoca para ele”, lembra Vera, hoje uma psiquiatra em São Paulo, mãe de dois filhos, o primogênito chamado João, em homenagem ao escritor. “Naquele domingo, ao entrar no escritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha. Soube depois: estava tendo o enfarte”, recorda na introdução do Ooó do Vovô!, uma coletânea de cartões postais enviados por Rosa às netas Vera e Beatriz Helena, publicada em 2003 pelas editoras da USP e da PUC de Minas (veja abaixo).

1973. Tom Jobim grava o seu álbum Matita Perê, talvez sua obra mais importante, e certamente, a melhor tradução musical da obra de Guimarães Rosa. Nele, em uma faixa dedicada ao escritor, resume a perplexidade do mundo com o seu desaparecimento prematuro, seis anos antes:



E por maus caminhos de toda sorte

Buscando a vida, encontrando a morte

Pela meia rosa do quadrante Norte,

João, João

...

Recebendo aviso entortou caminho

De Nor-Nordeste para Norte-Norte

Na meia vida de adiadas mortes

Um estranho chamado João

...

Por sete caminhos de setenta sortes

Setecentas vidas e sete mil mortes

Esse um, João, João

E deu dia claro

E deu noite escura

E deu meia-noite no coração

...


Hoje, Aracy, aos 98 anos, vive em São Paulo, com o filho Eduardo e a nora Beatriz Tess.

Vasculhando a biblioteca da Universidade de São Paulo, movido pela curiosidade de saber como a palavra “nonada”, a primeira de Grande Sertão: Veredas, foi traduzida para línguas como alemão, inglês, espanhol e italiano, me dou conta que devo a minha vida e a de meus pais a pessoas como Aracy.

Como judeu polonês, meu pai era considerado cidadão de segunda classe em seu próprio país, com direitos limitados (não podia freqüentar bibliotecas e universidade). E sobreviveu aos nazistas apenas por que nem todos se renderam à barbárie totalitária.

No caso dele, e também de minha mãe, não foi Aracy, mas outras pessoas que os salvaram, arriscando suas vidas. Já grande parte da minha família não teve a mesma sorte. Meu avô paterno morava no Gueto de Varsóvia de onde a partir de julho de 1942 centenas de milhares de judeus começaram a ser deportados para campos de concentração. Em vagões de gado.

Segundo o judaísmo, quem salva uma vida, salva uma parte da humanidade, porque salva toda sua infinita descendência. Para estes, por maiores que sejam, as homenagens nunca serão suficientes.


René Decol é jornalista e doutor em ciências sociais pela Unicamp. Nascido em São Paulo, filho de sobreviventes do holocausto, está escrevendo um livro sobre imigração judaica para o Brasil

Meu avô Joãozinho

Introdução ao Ooó do Vovô! : Correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess

Vera Tess

Aracy, minha avó, e João Guimarães Rosa, Joãozinho para ela, conheceram-se em 1938, no Consulado Geral do Brasil em Hamburgo, onde ela trabalhava. Ele, após ingresso na carreira diplomática, assumiu como cônsul adjunto, seu primeiro posto no exterior. Ambos desquitados. Foi quando começou uma história de amor que durou quase trinta anos.

Em 1942 houve o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha e posterior declaração de guerra. Na troca de diplomatas brasileiros e alemães, os brasileiros, após permanecerem sob internato na cidade de Baden-Baden, vieram para o Rio de Janeiro. Meu avô seguiu a carreira, enquanto minha avó deixou o Itamarati.

Moraram inicialmente na praia do Russel, no Flamengo e depois na rua Figueiredo de Magalhães, em Copacabana. Posteriormente fixaram residência na rua Francisco Otaviano, 33, no Posto 6, no Arpoador, onde ele veio a falecer. Foi ali que o conheci e convivi com ele, infelizmente por tão pouco tempo.

Morávamos em São Paulo, meus pais, Edu e Bia, e meus quatro irmãos: Beatriz Helena, minha irmã, mais velha um ano, a quem eu chamava de "dois-neném" (eu era a número um, claro!); e meus irmãos mais velhos, Eduardo (Bite), Luiz Renato (Uiz Renato) e Plínio (Pínio).

Caçula, eu não ia ainda para a escola, o que me permitia passar mais tempo no Rio. Os cartões, escritos entre 1966 e 1967, quando eu tinha entre 3 e 4 anos de idade, eram como vovô Joãozinho me convidava para mais uma temporada no Rio.

Demorei a falar (por pura preguiça, diziam), limitava-me a apontar para os objetos que eu queria pegar, chamando-os de "ooó". Daí meu avô carinhosamente chamar-me de "ooó do vovô". Nos cartões e nas anotações ele recriava um universo completamente familiar para nós dois, reproduzindo sons, imagens, objetos e personagens, numa linguagem sedutora.

Todo esse material - cartões, anotações, cartas e desenhos feitos por mim e por minha irmã, junto com recortes de jornal sobre o autor João Guimarães Rosa com anotações suas para mim - foi guardado pela minha avó por anos. Em 1998, quando levamos os manuscritos do Grande Sertão: Veredas para Guita e José Mindlin nos orientar sobre como conservá-los, levei também estes cartões. Começou aí toda a história de publicá-los.

Vovô Joãozinho não era meu avô biológico, mas meu avô de coração e de fato, o único que conheci. Era o vovô que contava estórias, muitas estórias, que fazia dormir cantando músicas de ninar, que levava ao Zoológico - adorávamos o Zoológico do Rio - que escrevia cartas e desenhava cartões...

Quando ele morreu, num domingo, 19 de novembro de 1967, eu tinha quatro anos e três meses. Três dias depois da posse na Academia Brasileira de Letras. Estávamos no Rio para a cerimônia, meus pais e eu. Meus pais voltaram para São Paulo na manhã do dia 19, e eu fiquei.

Todos os domingos, quando eu estava no Rio, minha avó e eu íamos à missa ao final da tarde, na igrejinha do Forte de Copacabana, que ficava justo ao lado do edifício. Na volta para casa, eu levava pipoca para ele. Naquele domingo, ao entrar no salão dos fundos, onde ficava,seu escritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha e chamando-me ..." ooó". Soube depois: estava tendo o enfarte.

Em minha última lembrança, ele está deitado num dos quartos, vestido com o fardão da Academia Brasileira de Letras, muita confusão no apartamento.

Cada vez que releio esses cartões, sinto um carinho imenso por esse "vovô queído" e muita pena por não ter tido mais tempo com o nosso vovô Joãozinho.

04 dezembro 2006

Um amigo chamado João

"Debaixo desta casca de civilizado, o que há é um jagunço. É o que sou. Comigo injustiça se corrige é a bala"

João Guimarães Rosa


Para o lançamento da edição de 1992 de Grande Sertão: Veredas, o jornalista Franklin de Oliveira escreveu uma introdução, que acabou desaparecendo das edições mais recentes. Nela, o jornalista e crítico literário, que se tornara amigo pessoal de Rosa, traça uma biografia suscinta do escritor. O texto foi editado por questões de concisão e clareza

Lembranças: Rosa, relógio de sol

Franklin de Oliveira

Sigo recordando o meu primeiro encontro com João Guimarães Rosa. Aconteceu em 1945 . . . Erymantho Coelho da Silva era o meu amigo mais íntimo. Mineiro, de Barbacena, fora o primeiro professor de inglês de Guimarães Rosa, quando este se preparava para ingressar por concurso no Itamarati. Erymantho ia sempre lá na casa de Rio Branco, bater papo com o Rosa.

Tinha saído Sagarana, provocando uma revolução na imprensa. Um dia Erymantho me disse: "Sabes? Estive ontem com o Rosa e ele falou em ti. Eu disse a ele que além de trabalharmos na mesma empresa, éramos grandes amigos. Ele me pediu para te levar ao seu gabinete." Recusei. Recusei não só uma, mas várias vezes: "Sou bicho de concha, gosto de ficar quieto no meu buraco." Mas, uma tarde, o Erymantho, ao voltar do Itamarati, me disse: "O Rosa me deu um ultimato. Quer que te leve a ele amanhã às 13 horas. (Rosa era o chefe de gabinete do chanceler João Neves da Fontoura.) Disse-me que se eu não te levasse, ele romperia comigo." E perguntou: "Agora, vai ou não vai? Vai ou vai querer que eu perca um amigo como o Rosa?" Não tive outro remédio, senão responder: "Se é assim, vou."

Chegamos ao Itamarati, o Erymantho apresentou-me ao Rosa, que mandou fechar as portas do gabinete e desligar os telefones. Ficamos a tarde inteira conversando. À hora de sairmos, ele puxou uma das gavetas de sua mesa de trabalho, retirou de lá um exemplar da primeira edição de Sagarana, escreveu a dedicatória: "A F. de O., que me faz acreditar ainda mais nas coisas em que mais acredito, com a crescente e inevitável amizade do G. R." Deu-me um abraço e disse: "Não te largo mais."

Antônio Calado, que conhece a história, uma vez me disse: "E não te largou mais."

* * *

Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, nos arredores da gruta descoberta pelo naturalista dinamarquês Lund, motivo porque Rosa por vezes chamava a sua terra de Lundlândia.

Em 1918, o seu padrinho e avô Luís Guimarães o leva para Belo Horizonte, matriculando-o no Colégio Arnaldo. Concluído o ginásio, matricula-se Rosa, em 1925, na Faculdade de Medicina de BH. Formado, é o orador da turma. Em 1930 casa-se em Belo Horizonte. No ano seguinte inicia a sua carreira de médico em Itaúna, no oeste mineiro. Em 1932, quando São Paulo se insurge contra a ditadura de Getúlio Vargas, Rosa ingressa como voluntário na Força Pública Mineira, na qual mais tarde se torna oficial médico, via concurso.

Em 1934 faz concurso para o Itamarati, tendo conquistado o segundo lugar. Via na diplomacia um meio de conhecer o mundo, coisa que, como menino pobre, jamais poderia fazer. Seu primeiro posto na carreira foi o de cônsul na Alemanha (Hamburgo, 1938), onde conheceu sua segunda mulher, que seria a companheira de toda a vida - Aracy Moebius de Carvalho, que ele tratava carinhosamente de Ara. Com heróicas feijoadas aos domingos, ambos matavam as saudades do Brasil.

Em 1932 a José Olympio promove um concurso de contos. Rosa se inscreve com Sagarana, título posterior do volume antes chamado de Sezão. Graciliano Ramos votou num outro - um livro de Luís Jardim. Do júri, só Marques Rebelo votou em Sagarana. Graciliano depois se arrependeu e desandou à procura do autor que, a essa altura, andava longe.

Estoura a guerra em 39. Cônsul adjunto em Hamburgo, Rosa dá proteção diplomática a todos os perseguidos políticos do nazismo. "Hitler era o demônio", cansou de me dizer. Com Ciro de Freitas Vale, embaixador do Brasil no Terceiro Reich, e Cícero Dias, Rosa foi confinado em Baden-Baden.

Volta ao Brasil. Demora pouco no seu país. É mandado para a Bolívia, como secretário da nossa embaixada. Em 1946 é nomeado chefe de gabinete de João Neves da Fontoura, ministro do Exterior. E logo a seguir é nomeado delegado brasileiro junto à Conferência da Paz.

Volta em 1942. Nesse ano, Rosa empreende a viagem ao pantanal matogrossense, cujo perfil retrata na rapsódia "Com o vaqueiro Mariano". Ele é o descobridor do paraíso ecológico do Brasil Central. Publicado no Correio da Manhã, "Com o Vaqueiro Mariano" é reeditado em plaquete, com ilustrações de Darel Valença Lins, em Niterói, em 1952.

De 1948 a 1952, ei-lo em Paris como primeiro secretário e ministro conselheiro da nossa embaixada na França. Em 52 retoma ao Brasil e, de novo, é nomeado chefe de gabinete do chanceler João Neves da Fontoura.

1956. Este é o seu grande ano. Publica, em maio, os dois volumes do livro de novelas Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, pela José Olympio.

É eleito para a Academia Brasileira de Letras, na vaga de João Neves da Fontoura. Espírito supersticioso, adia a data da posse. Diante dos incessantes adiamentos, Austregésilo de Ataíde chega a lhe propor considerá-lo empossado. Rosa recusa até que chega o dia 16 de novembro de 1967, marcado definitivamente para a investidura acadêmica. A posse equivale a uma nova consagração.

Eu não tinha telefone em casa, e não ouvia rádio nem televisão. Na manhã de 20 de novembro, tínhamos encontro marcado para o almoço. Ao sair de casa, para tomar o ônibus, para ir ao seu encontro, na esquina da avenida Bartolomeu Mitre com a praça Antero de Quental, numa banca de jornal, vejo O Globo dependurado, com o retrato do Rosa com a farda acadêmica no alto da primeira página. Aproximei-me, pensando que era ainda matéria sobre a posse. Não. Era a notícia de sua morte súbita. O choque foi brutal. A sua brutalidade perdura há um quarto de século, com toda a sua crueldade.

Fui direto para a Academia. Lá estava o meu amigo. Dizia ele: "Não se morre: fica-se encantado." Conversando com Aracy, ele, em varias oportunidades, pedira para ser sepultado com os óculos. Já desenganado, num hospital de Zurique, Thomas Mann vivia no seu semicoma mirando o anel com uma turmalina verde que ganhara da filha Erik, ao fazer oitenta anos. Miguilim quis levar para o lado escuro da vida os seus óculos de míope.


***


E por que Rosa deixou a medicina?

Porque não admitia que um doente morresse em suas mãos.

A medicina dera-lhe várias paixões na sua vida. Entre estas,estavam as serpentes, que ele considerava o símbolo da perversidade. Resolveu estuda-las. Um dia, estava no campo, perseguindo uma, quando um enxadeiro lhe deu o sábio conselho:

"Moço, com mulher e com cobra não se brinca."

Rosa aceitou a segunda parte do conselho. E continuou a achar a mulher uma invenção maravilhosa.

Rosa era extremamente cioso de sua vida íntima. "Quem quiser me conhecer, procure-me nos meus livros", dizia aos leitores que o procuravam no Itamarati. Polido, recebia as pessoas com extrema delicadeza, mas nada de intimidade. Um contínuo, negro, quando me encontrava no Itamarati, dizia-me, referindo-se ao Rosa: "Aquilo sim é que é 'deplomata' leal."

Minucioso, anotava tudo, pois aprendera com Goethe que na natureza, nada se repete, não há coisa que seja igual a outra. Se lhe faltava papel, fazia anotações nos punhos da camisa.

Dos sentimentos humanos, aquele que mais o perturbava era a inveja. E me lembrava sempre o episódio bíblico de Caim e Abel, acrescentando que nós ambos éramos muito expostos a tal sentimento.

Vivia lendo. Mas não guardava livros: praticamente não tinha biblioteca. Tinha uma pequena goethiana, selecionadíssima. Livro de poesia, nenhum. Para o Rosa, a música e a prosa eram as duas formas de arte suprema. Assinalava nos livros que lia as passagens que lhe interessavam, mas com lápis de variadas cores. Não se sabia se as marcas eram de concordância, de discordância ou dicas para a formulação de novos pensamentos. Não dava a chave da mina a ninguém. Nos seus textos, fazia questão da tipologia. E quando achava lindo o nome de um lugar, como Buriti de Inácia Vaz, não hesitava em deslocá-lo do Maranhão para uma região mineira que fosse cenário de suas narrativas.

Me pegava em casa, toda manhã, no carro do Itamarati e descia para a cidade, pela Gávea. Na altura do Jardim Botânico, mandava o carro parar, e ficava olhando as palmeiras com olhos de mirar.

Não suportava injustiças. E me dizia: "Debaixo desta casca de civilizado, o que há é um jagunço. É o que sou. Comigo injustiça se corrige é a bala."

Em 1964, quando começou a caça às bruxas, quis que fosse me asilar na casa dele. Recusei: poderia comprometê-lo e eu não tinha esse direito. Só quando viu que não me demoveria da minha decisão, organizou uma lista de embaixadas nas quais eu pudesse buscar o direito de asilo.

Um dia a revista Manchete publicou uma foto de cassados embarcando de avião para o exílio. E me incluíram entre os expatriados. Estava para sair a edição americana de Sagarana. Rosa enviou a Alfred Konpf, o editor estadunidense, uma cópia de meu artigo sobre as epígrafes de Sagarana, com uma carta. Dizia que fazia questão da inclusão do meu texto na edição norte-americana, porque eu era perseguido político e ele queria dar um testemunho universal de sua solidariedade a mim.

Devemos ao embaixador Roberto Assunção a mais bela e exata definição de João Guimarães Rosa: relógio de sol - só marca as horas luminosas.

Em 1955, por motivos políticos, eu estava desempregado. Um dia, a campainha do apartamento da rua Rainha Guilhermina, no Leblon, onde eu residia, toca. Era o Rosa: "Desenferruja a pena. O Antônio Calado está te esperando hoje às 16 horas no Correio da Manhã."

O Rosa trançara com o Paulo Bittencourt e o Pedro Lessa Speyer, mineiro de Montes Claros, sobrinho do grande Pedro Lessa, o meu ingresso no Correio da Manhã, em substituição ao Álvaro Lins, que estava deixando o jornalismo: iria ser o chefe da Casa Civil do presidente Juscelino Kubitschek.

Rosa praticava aquilo que os alemães chamam de "amizade combatente": atuava a favor do amigo, sem esperar que este lhe pedisse ajuda. E fazia tudo mineiramente, em silêncio.

João Guimarães Rosa: quantas lembranças ficaram fazendo, de mim para mim, a vida mais bela!

Junho de 1992