27 dezembro 2010

Bom Retiro, anos 80

O visionário Vilem Flusser e um ensaio fotográfico sobre o bairro judeu

Eu estava acabando a faculdade e não sabia ainda se queria ser jornalista ou fotógrafo. Era 1981 e o grande Marcos Faerman editava o caderno de cultura da Shalom, prestigiada revista judaica cuja dona e diretora era a Patricia Finzi Fingerman.

Era uma revista progressista, como se dizia na época, e em plena ditadura militar levemente de esquerda. Era independente, pacifista, e corajosa: criticou a invasão israelense do Líbano e foi a favor do movimento Paz Agora desde o início. Pagou caro por isso: fechou ainda no começo dos anos 90.

A redação ficava no coração do Bom Retiro, em plena rua da Graça. O editor era o Jaime Klintowitz (hoje um dos editores-executivos da Veja). Por ali passaram nomes como Alberto Dines, Gilberto Dimenstein, Caio Blinder, entre outros. O diretor de arte era o Carlos Clemen, artista argentino bem conectado, particularmente com a nata da vanguarda dos artistas argentinos exilados no Brasil.

"O buraco da Sara": apelido com um toque do sarcasmo familiar ao humor judaico, era o restaurante mais conhecido e popular do Bom Retiro


Um dia o Marcão, como era chamado por todos, me encomendou um ensaio fotográfico sobre o Bom Retiro para a revista. As fotos eram para ilustrar uma reportagem da Bety Malziner, outra que começou lá. O Bom Retiro da época era o Bom Retiro dos judeus. Os italianos já tinham saído fazia tempo e os coreanos ainda não tinham chegado. O bairro sempre foi de imigrantes, mas entre 1960 e 1980 tinha uma personalidade tipicamente judaica,com suas sinagogas, comércio típico, e principalmente, com seus personagens. Mostrei as fotos ao Marcão.

Uma confecção de bonés na rua da Graça: população tipicamente urbana, os judeus se especializaram em ocupações também urbanas, pelo menos desde a Idade Média



"Não é nada disso, tchê", foi logo corrigindo com seu inevitável sotaque gaúcho. "Você vai ali na burekita; e no Buraco da Sara, e na loja de guarda-chuva do Seu Fulano. Ah, e não esquece da Mercearia Paris". O Marcão, com sua cabeça de escritor, já tinha fotografado mentalmente os principais personagens do bairro.

E lá fui eu na minha primeira missão fotojornalística, usando a velha Laica F3 do meu pai. Depois virei jornalista, na própria Shalom, onde passei a assistente de redação. O Alberto Dines foi chamado para ser consultor e criou um conselho de redação que incluía o Antônio Cândido. Minha função, entre outras, era editar os colunistas mensais. Um deles era o Vilem Flusser. Na época sabia apenas que era um professor tcheco que tinha fama de genial ou excêntrico. Na verdade, ela era professor de filosofia do ITA, numa período em que o departamento contava com vários pensadores de ponta.

Só muito recentemente soube que o tal professor tcheco do ITA hoje é considerado um dos precursores da cultura digital. Tudo que hoje se filosofa sobre a famosa tecnologia da informação ela já discutia no início dos anos 80... Não havia ainda o computador pessoal. A reflexão dele era toda em torno da fotografia. Pensar sobre a idéia da informação transmitida de maneira visual (hoje diríamos digital, em pixels; na época sequer se falava disso) pra ele foi o suficiente para prever uma revolução tecnológica. Há muita coisa sobre ele na internet. Soube também que ele escrevia em quatro línguas, o que fazia diariamente para exercitar o cérebro... E que em algum momento teve uma fábrica de transformadores (algo que parece sensato numa época em que parte das tomadas do país era 110 voltas, parte era 220; pensando bem, parece que ele tinha alguma coisa umbilical com a tecnologia).

Editar o Flusser talvez tenha sido premonitório: mantenho o gosto pela fotografia, e a ele se misturou o gosto pelas novas tecnologias digitais. Fotografo hoje com uma câmera digital e gosto de publicá-las no meu blog. Tenho milhares, em todos os formatos, do preto & branco 35 milímetros acumulando poeira em alguma estante às milhares de digitais, espalhadas por cinco HDs externos. Como bem previu o Vilem Flusser, a tecnologia digital revolucionou a maneira como nos comunicamos. Entre outras coisas mudou a maneira como exibir nossas fotos. Na época, três destas fotos foram parar numa exposição no Beth Hatfutsoth, o museu da diáspora de Tel Aviv. Agora elas estão bem aqui, na web.



Dona Sara e suas fiéis auxiliares na cozinha do restaurante que tinha um clima bastante familiar


Numa manhã qualquer da semana, judeus fazem o serviço religioso matinal na Sinagoga da Rua da Graça


O pletzl, o lugar onde se trocavam idéias, notícias, informação. Uma espécie de FaceBook informal da época


Vendedor de cachorro-quente da rua José Paulino


A sinagoga da rua da Graça era movimentada até mesmo numa manhã de um dia normal da semana


 
Serviço religioso matinal


O pletzl, na esquina da rua da Graça com Ribeiro de Lima


Conversando no pletzl


Confecção de guarda-chuvas, negócio familiar muito comum entre judeus vindos da Europa central e do centro-leste


Um cliente compra pão na Mercearia Paris, um então tracidional estabelecimento kosher na Rua da Graça

15 dezembro 2010

Menino experimental

Murilo Mendes

(Publicado em originalmente em Poliedro, 1965)


O menino experimental come as nádegas da avó e atira os ossos ao cachorro.

O menino experimental futuro inquisidor devora o livro e soletra o serrote.

O menino experimental não anda nas nuvens. Sabe escolher seus objetos. Adora a corda, o revólver, a tesoura, o martelo, o serrote, a torquês. Dança com eles. Conversa-os.

O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros.

O menino experimental, declarando superado o manual de 1962, corrige o professor de fenomenologia.

O menino experimental confessa-se ateu e à toa.

O menino experimental é desmamado no primeiro dia. Despreza Rômulo e Remo. Acha a loba uma galinha. No oco do pré natal gritava: "Champanha, mamãe! Depressa!"

O menino experimental decreta a alienação de Aristóteles. Expulsa-o da sua zona, com a roupa do corpo e amordaçado.

O menino experimental repele as propostas da prima de dezoito anos, chamando-a de bisavó.

O menino experimental, escondendo os pincéis do pintor, e trancando-o no vaso sanitário, obriga-o a fundar a pop art, única saída do impasse.

O menino experimental ensina a vamp a amar. Dorme com o radar debaixo da cama.

O menino experimental, dos animais só admite o tigre e o piloto de bombardeiro. Deixa o cão mesmo feroz e o piloto civil às pulgas.

O menino experimental benze o relâmpago.

O menino experimental antefilma o acontecimento agressivo, o Apocalipse, fato do dia.

O menino experimental festeja seu terceiro aniversário convidando Jean Genet e Sofia Loren para jantar. Espetados na mesa três punhais acesos.

O menino experimental despede a televisão, "brinquedo para analfabetos, surdos, mudos, doentes, antinietzsches, padres podres e croulants".

O menino experimental atira uma granada em forma de falo na mãe de Cristovão Colombo, sepultando as Américas.

24 janeiro 2010

Sobre o pobre B.B.

Sempre achei este poema de Brecht um pouco... amargo demais. Então resolvi dar uma, como dizer, reformada nele. Ficou assim:


Eu, B.B, venho da cidade grande.
Minha mãe me levou para Santos
Quando eu ainda estava na sua barriga.
E o cheiro do Chapéu de Sol
Me acompanhará por todas alamedas.

A selva de asfalto é minha casa. Decorada
Desde cedo com todos os sacramentos:
Jornais. A Folha. O Estado. Cigarro. E cerveja.
Barulhenta, sufocante, atrapalhada até o limite.

Sou amigável com as pessoas. Gosto da galera.
Dou um abraço em todo mundo. "E aí, como é que é, meu irrmão?"
Digo a mim mesmo: são outros animais, só que de um tipo peculiar.
E digo outra vez a mim mesmo: e daí? Por acaso também não sou?