29 agosto 2007

O apê do João

Na margem do Rio, cercado de capitães e coronéis, com vista para a Praia do Diabo. Sabe quem morou lá?

Tudo foi surpreendente. A rua, que encontrei por acaso; depois, o edifício, que só conhecia de uma foto ainda de 1923, quando era o único naquele lugar. Hoje, ele mal aparece no meio de uma mini-selva de pedra plantada no Arpoador, entre Copacabana e Ipanema.

Era difícil de acreditar que aquele predinho de quatro andares, com seu jeito tímido que só esses edifícios antigos tem, fosse o lugar onde ele viveu os anos mais importantes da sua vida, sempre ao lado da segunda mulher.

Só quando atravessei a rua, tive certeza: foi ali mesmo, mas não no da frente e sim no prédio de trás, que agora fica escondido. Foi lá que ele viveu, recebeu a elite literária internacional da época, escreveu sua obra-prima, e morreu, aos 59 anos, no áuge do sucesso e do prestígio.

É preciso um esforço de abstração, apagando os horrendos prédios vizinhos, principalmente o bingo da direita, mas também a garagem de carros da esquerda, para entender o lugar. Na época, não havia nada, apenas o Edifício Ícaro, bem ali na rua Francisco Otaviano, 33. De um lado, Ipanema, então uma praia deserta. Do outro Copacabana, o Forte em primeiro plano. Era, com alguma licença poética, a própria terceira margem do Rio.

Com a câmera digital na mão atravesso a rua, chamo o porteiro, e pergunto: “Foi aqui que morou Guimarães Rosa?”

“Foi, sim senhor”.

A grade de alumínio está fechada. Sabe como é, o Rio mudou. “Será que eu poderia entrar pra fazer uma foto? Só da fachada”. Não, não posso. “Só com autorização do síndico, e ele não está”.

Calculo que o espaço entre as barras da grade é suficiente para passar a lente da máquina. E usando o zoom, poderia tirar uma foto dali mesmo. “E se eu fizer uma foto daqui?”, arrisco. Com ar cúmplice, e aquele jeito bem carioca, ele olha pros lados, e diz : “Daí, não estou nem lhe vendo”.

Depois, experimentei outros ângulos: do outro lado da rua, em frente do Shopping Cassino Atlântico... Do lado direito, em frente ao... bingo...

O Arpoador mudou muito desde os tempos que ele andou por lá. Nos anos 80 tornou-se ponto de hippies e surfistas, e agora há dezenas de lojas de pranchas e bermudas e acessórios e tudo o mais exibindo posters de Bob Marley, Peter Tosh e Che Guevara.

A ponta do Arpoador tem uma posição estratégica. Ali os militares construíram em 1916 o Forte de Copacabana. Até muito recentemente, era fechado ao público. (Em 68 "abrigou" presos do regime militar. O Ziraldo passou um mês lá). Só nos anos 90 foi aberto para nós, civis.

Enquanto fotografava o prédio, um garagista do bingo, vendo o que parecia um turista desavisado registrando um prédio antigo sem qualquer atração, apontou para o outro lado, onde estaria a suposta coqueluche turística do Rio de hoje. “Favela, favela”, dizia apontando o Morro do Pavão na direção da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.

“Obrigado, merrmão”, respondi no meu melhor carioquês. “Mas tu sabe quem morou aqui?”, desafiei. “Não, quem?”, ele perguntou, pego de surpresa. “Um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos: João Guimarães Rosa”. O turista conhecia um segredo do Rio. Não há pior humilhação para um carioca. “Mas brasileiro não dá valor pras suas coisas mesmo, né?”, justificou.

O prédio, como tudo que cerca a vida do escritor, tem história. Foi o primeiro construdio ali, bem atrás do Forte, ainda no início dos anos 20. Sob a alegação de que era visível de longe, e tornaria o Forte um alvo fácil, os militares quiseram derrubá-lo. Mas então ele já abrigava figuras como o Brigadeiro Eduardo Gomes, o Marechal-do-ar Henrique Fontenelle, e seu sobrinho, o polêmico Coronel Américo Fontenelle, que depois viria a ser diretor de trânsito primeiro no Rio, e depois em São Paulo. Com tanta gente importante, o edifício foi poupado por Getúlio.

Guimarães Rosa e sua segunda mulher, Dona Aracy, mudaram-se para lá no início dos anos 50.

Como se sabe, depois de entrar para o Itamaraty, Guimarães Rosa havia sido nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo em 1938. Ali, já separado da primeira mulher, conheceu Aracy, com quem conviveria nos próximos 30 anos, até a sua morte. (Casaram-se por procuração no México, como era de praxe, já que no Brasil ainda não havia divórcio. Dona Aracy, hoje com 99 anos, mora em São Paulo, com o filho do primeiro casamento, Eduardo Tess, e a nora).

Voltaram para o Brasil em 1942, quando o país rompeu relações com a Alemanha. Depois de várias andanças internacionais, Rosa e a mulher se instalaram no apartamento da Francisco Otaviano. Foi lá que ele escreveu Grande Sertão: Veredas. Foi lá que discutiu com editores do mundo todo as traduções para dezenas de línguas.

Bem roseanamente, a parte de trás do edifício dá para a Praia do Diabo, um costão que só é acessível através do Forte de Copacabana. Máquina em punho, vou para lá, atrás do edifício. É onde ficava o seu gabinete de trabalho. Dali, o escritor tinha uma vista magnífica: o mar era visível de todos os lados.

Mas no meio do caminho tinha um Opala velho, e dois soldados tentando consertar, sem grande sucesso. Deduzi isso, porque chutavam e xingavam a sucata, reclamando da falta de peças. Quando me viu um dos soldados ficou genuinamente surpreso. “Onde o senhor pensa que vai?”, perguntou. No meu afã de fotografar o escritório onde Guimarães Rosa escreveu histórias de jagunços e coronéis, não percebi que havia invadido uma área militar. Usando novamente o idioma local, tentei conversar: “Olha só, merrmão: sabe quem morou ali?” Ele não estava pra conversa. “Não sei e não quero saber. Aqui só entra com autorização do capitão”.

Ao invés de falar com o capitão, fui pro outro lado, atravessando o bem mais amistoso parque Garota de Ipanema, até a Praça do Arpoador.

Da pequena praia do Arpoador, entre surfistas e pescadores, fotografei o gabinete de trabalho onde Guimarães Rosa morreu, de enfarte, em 19 de novembro de 1967. Foi encontrado caído sobre a mesa de trabalho pela neta, Vera Tess, e Dona Aracy. Para enorme surpresa dos surfistas - que achavam no mínimo curioso que alguém estivesse ali curtindo algum outro tipo de onda. Tipo, o apê do João.

Quando Rosa morreu, nem Carlos Drummond de Andrade acreditou: “Ficamos sem saber se João existiu, de se pegar”. Mas o prédio onde ele morou está lá. Não peguei, mas fotografei. Escondido em um dos lugares mais especiais da cidade maravilhosa, cercado por capitães e coronéis, tendo como vizinho a Praia do Diabo, Guimarães Rosa achou o seu grande sertão em plena zona sul do Rio de Janeiro.

(Veja as fotos do Edifício Ícaro no FotoBlog).

21 maio 2007

Uma certa Aracy, um chamado João

Ela enfrentou – e driblou – três ditaduras, salvou centenas de judeus dos campos de extermínio nazistas, escondeu Geraldo Vandré quando o cantor e compositor era procurado pelos militares, casou-se e foi companheira durante 30 anos de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Seu nome: Aracy Guimarães Rosa

Por René Daniel Decol

Leia íntegra da matéria na edição da revista TPM de maio

16 abril 2007

Musa militante

Ela enfrentou – e driblou – três ditaduras, foi a mulher definitiva de um grande escritor , e escondeu Geraldo Vandré dos militares. Mas provavelmente você nunca ouviu falar dela. Seu nome: Aracy Guimarães Rosa

Diz o velho ditado que todo grande homem tem uma grande mulher por trás. Não é menos verdade o caso de João Guimarães Rosa, um de nossos maiores escritores. Só que no caso dele, a grande mulher ficou esquecida. Nada mais natural no caso de um autor cuja obra e biografia são cercados de mistério – e maus entendidos.


Guimarães Rosa casou-se duas vezes: a primeira, com Lygia Cabral Penna, em 1930, aos 22 anos de idade. Mas foi um casamento que durou pouco tempo, e acabou em separação: nada incomum hoje em dia, mas na época ainda um tabu. Ele ainda era um jovem médico em Minas Gerais, viajava pelo sertão colhendo material para seus livros, e prometia muito como escritor.

Mas foi só em 1938, quando já separado de Lygia, Rosa foi nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, que conheceu aquela que viria a ser sua segunda mulher, e companheira da vida madura: Aracy Moebius de Carvalho. Afinal, é com a nomeação para Hamburgo que começa, de fato, a carreira de João Guimarães Rosa como diplomata, escritor e personalidade de projeção mundial. Na diplomacia, encontrou a forma de ter tempo para viajar, aprender línguas, ler e escrever, suas grandes paixões. De 1938, até sua morte, em 1967, Aracy sempre esteve ao seu lado. Não é a toa que Grande Sertão: Veredas seja dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”, diz o escritor na epígrafe de sua obra-prima.

Mas Aracy foi uma mulher a frente do seu tempo não só por ter sido a companheira e inspiradora de um dos maiores escritores. Sozinha, por conta própria, e muitas vezes contra a vontade do marido, Aracy praticava o que os alemães chamam de “amizade combatente”: atuava em favor dos oprimidos.

Primeiro, foi durante a Alemanha nazista. Aracy, nascida no Brasil, acabara de se separar do seu primeiro marido, e fora morar com uma tia na Alemanha. Poliglota, culta, educada, conseguiu um cargo graduado no consulado brasileiro em Hamburgo: entre outras atribuições, era responsável pela seção de vistos.

Era a metade dos anos 30 e começava a lenta e inexorável ascensão do nazismo. Os nazistas decretaram que os judeus alemães tinham que abandonar o país (e ainda por cima pagar um “imposto de emigração”). Exatamente neste momento as portas começam a se fechar, uma atrás da outra. Getúlio Vargas, admirador de Hitler e Mussolini, determina aos consulados na Europa que sejam negados vistos aos judeus.

Contrariando as ordens de Getúlio e de seus superiores, Aracy 'dá um jeito' de burlar a atenção do cônsul-geral (que não era Guimarães Rosa; o escritor era cônsul-adjunto e não tinha nada que ver com a seção de vistos), e conceder vistos de entrada no Brasil para judeus desesperados para encontrar um refúgio. “Como minha mãe despachava outros assuntos, no meio dos papéis ela enfiava os vistos que o cônsul-geral assinava sem perceber”, lembra Eduardo Tess, filho do primeiro casamento de Aracy, e enteado de Guimarães Rosa. “Como cônsul-adjunto ele não era responsável pelos vistos, mas sabia o que minha mãe estava fazendo e a apoiava”.

A coragem de Aracy foi reconhecida pelo governo de Israel: ela é um dos 18 nomes citados no Museu de Holocausto em Jerusalém, como pertencentes a uma seleta minoria que arriscou a vida para salvar a de judeus perseguidos e que de outra forma teriam acabado em campos de extermínio – e a única mulher.

Além de uma placa no Museu do Holocausto em Jerusalém (o famoso Yad-Vashem, nome em hebraico), ela ainda foi homenageada com um bosque plantado em seu nome entre Tel Aviv e Haifa pelo Keren Kayemet, a sociedade ecológica de Israel. A própria Aracy participou da cerimônia com um discurso quando a placa comemorativa com seu nome foi inaugurada em 1985.

Os 18 diplomatas homenageados no Yad-Vashem passaram por uma triagem onde só foram considerados os que arriscaram suas vidas sem nenhum outro motivo que não a ajuda humanitária, e em casos comprovados por testemunhas e evidências. Segundo a página que cita Aracy no site do Museu, estes 18 diplomatas “salvaram a vida de dezenas de milhares de indivíduos, na maioria judeus”.


Em 1942, o Brasil rompe relações com os países do Eixo e os diplomatas brasileiros na Alemanha são mantidos sob custódia em Baden-Baden. “Ficamos num hotel e nos tratavam mais ou menos”, lembrou Aracy no documentário Os nomes do Rosa, dirigido por Pedro Bial. “Com a guerra, tinha pouca comida, e a gente também passou fome. Eu emagreci muito. Comia um prato de sopa, mais nada. Havia pessoas de todos os Consulados internadas. Foi um tempo duro”.

De volta ao Brasil, Rosa oficializa a separação com Lygia e casa-se (por procuração, no México, como era praxe antes da existência do divórcio no país) com Aracy. Ela, que não era funcionária de carreira do Itamaraty, é indicada para o consulado de Quito, no Equador, um prêmio dado a todos os funcionários que passaram as agruras do período nazista. Ela recusa e abdica da carreira diplomática para ficar ao lado do marido, que começa a publicar seus livros no Brasil e em traduções no exterior com enorme repercussão da crítica mundial.

O casal que inicialmente se instalara no Rio de Janeiro, na Praia do Russel, muda em agosto de 1952 para Copacabana. No célebre apartamento com vista para a praia do Arpoador, Guimarães Rosa reescreve interminavelmente seus livros e escreve aquela que seria considerada por muitos sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas.

O casal então recebe a elite literária da época, entre os quais editores, tradutores e críticos americanos, alemães e italianos que, apesar da enorme dificuldade envolvida na tradução de palavras como “nonada”, querem a obra de Guimarães Rosa publicada em suas línguas.

Vem o golpe militar de 1964. Começa a caça às bruxas. Franklin de Oliveira, célebre jornalista e crítico literário que se tornara amigo íntimo de Rosa é uma das vítimas. O casal se oferece para escondê-lo. Ele recusa: não quer colocar o amigo em risco.

1967. Guimarães Rosa finalmente toma posse da cadeira na Academia Brasileira de Letras para a qual tinha sido eleito anos antes, mas que, supersticioso, adiara sistematicamente. No domingo, 19 de novembro, três dias depois da posse, sofre um enfarte fatal.

1968. Um ano após a morte do escritor vem o AI-5. Aracy participa de reuniões de artistas e intelectuais contra a ditadura e fica sabendo que Geraldo Vandré, um dos artistas mais procurados pelos militares, está escondido precariamente na casa de um parente. “Um dia recebi um telefonema da governanta de Aracy”, diz a parente de Vandré, que prefere não se identificar. “Disse que se precisássemos de algo, estaria pronta a ajudar. Foi com um anjo que caiu do céu na hora certa”. Esta fonte, cuja entrevista gravei, diz não quer se identificar porque Vandré ficou transtornado com os acontecimentos da época e não quer mais que se fale no assunto. Ela, porém, fez questão de dar o depoimento, ainda que anônima, em homenagem a Aracy.

Geraldo Vandré ficou escondido dois meses no seu apartamento. Ironicamente, acompanhava a movimentação do exército em seu encalço, já que a janela do escritório onde Guimarães Rosa trabalhava tem vista para o Forte de Copacabana. Justo ele, que encarnara como ninguém a pujança do jagunço na canção popular, assistia toda perseguição dos novos coronéis no poder sentado na mesa onde tantas histórias de coronel e jagunço foram escritas.

A relação entre Guimarães Rosa e Aracy não é difícil de entender: Aracy era culta, bonita, falava diversas línguas, e além de tudo, era uma humanista radical. Enfrentou o nazismo, o Estado Novo de Getúlio e a ditadura militar brasileira nas suas versões light (1964) e hard core (1968).

Nesta semana, Aracy completa 99 anos. Vive com o filho Eduardo Tess e a nora, Beatriz em São Paulo, na rua Dr Melo Alves, por coincidência, bem perto de onde outro anjo rebelde viveu: Elis Regina. Por ironia do destino, quem tem tanto para contar, não lembra mais de nada: sua memória foi se apagando com o tempo. O mais grave, porém, é que a memória nacional parece ter esquecido dela. Seu nome foi pouco lembrado no ano passado quando se comemorou ou 50 anos da publicação de Grande Sertão: Veredas, a obra-prima de Guimarães Rosa. Que afinal, foi dedicado a ela.


Publicado, com modificações, na revista Cláudia, de abril de 2007 (ainda nas bancas).

24 março 2007

Os 200 anos da abolição (na Inglaterra)

Há exatos 200 anos, o parlamento inglês aprovava uma lei proibindo o comércio de escravos em todo o Império Britânico

Ao se comemorar os 200 anos da abolição do comércio de escravos no Império Britânico, ainda falta muito para que possamos compreender em toda sua dimensão o período de quatro séculos no qual a escravidão e a navegação estiveram intrinsecamente ligadas à colonização das Américas. Em 25 de março de 1807, depois de vinte anos de campanha abolicionista, o Parlamento inglês decretou a ilegalidade do comércio de escravos, um ato que teria conseqüências fundamentais do outro lado do Atlântico. A partir de então, ao longo de uma série de medidas destinadas a extinguir o comércio, e depois a própria escravidão, a Inglaterra passou a reprimir o tráfico praticado por outras potências. O que fora parte integral da relação entre colônias americanas e suas metrópoles européias entre os séculos 15 e 19 começou lentamente a ser visto como uma aberração.



Nos últimos anos muito se pesquisou sobre a escravidão, esta instituição que marcou de forma tão profunda as colônias do Novo Mundo, e de forma particular, o Brasil. Um marco nessa historiografia é o recém-publicado Inhuman Bondage: The Rise and Fall of Slavery in the New World (Oxford University Press, 2006). O autor, diretor do Instituto de Estudos de Escravidão, Resistência e Abolição da Universidade de Yale, reuniu muito do que se produziu nas últimas décadas para compor um quadro panorâmico desta instituição tão profundamente ligada às nossas raízes.

Brion Davis mostra como o conceito de escravidão tem origens na Antiguidade e de alguma forma perpassa todas as grandes religiões. Mas foi com o “comércio triangular” através do qual os navios europeus exportavam artigos manufaturados (roupas, armas, objetos de metal) em troca de escravos, e estes por produtos naturais (açúcar, prata, madeira, café), fazendo uma navegação circular entre Europa, África e América, que fez com que o os africanos se tornassem integrais à história do Novo Mundo. O processo pode hoje ser visto, em retrospecto, como a primeira grande onda de globalização.

Por volta da metade do século 18, não só ingleses, mas franceses, portugueses, espanhóis, enfim, todos os grandes impérios da época enriqueciam com o “comércio triangular”. O maior império escravista, no entanto, era o inglês. Como lembra Brion Davis, “o comércio escravista, e seus desdobramentos, foram uma imensa fonte de riqueza e poder para a Inglaterra”. Dadas as suas proporções, é notável que a campanha abolicionista, que começou em 1787, tenha alcançado sucesso em apenas vinte anos.

A Inglaterra não era o único império escravista, mas seu inigualável poder marítimo fazia com que a escravidão nas suas colônias fosse um caso único em termos de alcance, tamanho e interação com outras instituições sociais e políticas - relação esta que era constantemente transformada e adaptada.






O começo do século 19 assistiu a uma enorme mudança de escala e natureza desta interação. Não se tratou de fenômeno isolado, mas parte de uma série de transformações que forjaram o nascimento do mundo moderno. Esta era turbulenta, caracterizada por forças contraditórias (revolução e reação, liberdade e imperialismo, guerra e paz, iluminismo e escravidão) teve como uma de suas consequências fazer com que as relações políticas e econômicas da Inglaterra com as colônias fossem sacudidas. E inaugurasse uma nova era na história do Novo Mundo.

Mas muitas perguntas ainda estão sem resposta. Qual foi, por exemplo, a dimensão exata desta migração forçada, o primeiro grande movimento populacional da história? As estimativas variam. Os historiadores hoje concordam que algo entre 11 e 12 milhões de africanos foram transportados através do Atlântico, entre os séculos 15 e 19, nas condições mais desumanas possíveis. Mas há quem chegue até os 20 milhões.

Quantos morreram na travessia, em uma época em que se calcula que um em cada cinco navios que tentavam atravessar o Oceano naufragavam?

O que se sabe é que o Brasil foi o segundo maior destino de africanos, perdendo apenas para as ilhas do Caribe, incluindo Cuba. Entre 1820 e 1880, quando a Inglaterra já tinha declarado o comércio ilegal, e ameaçava afundar qualquer navio transportando escravos através do Atlântico, mais de dois milhões foram trazidos para o Brasil e para Cuba. A mortalidade era tão alta que se fazia necessário um fluxo constante, apenas para manter o estoque existente.

Embora muitos lucrassem com o comércio escravista, na maior parte os europeus sequer sabiam de sua existência. Na própria Inglaterra não havia escravidão; portanto, não havia razão para os ingleses lidarem com esta verdade inconveniente.

O meio pelo qual o açúcar chegava às mesas européias era cuidadosamente escondido através de eufemismos: não havia tráfico, mas sim “aventuras na África”. Por trás das aparências, no entanto, começou a correr um sentimento que algo estava errado. Principalmente ao alvorecer das luzes, a partir do momento que começava a ganhar influência cada vez maior o iluminismo, com sua promessa de pautar a ação humana pela razão.

O sentimento de culpa provou ser o tendão de Aquiles do tráfico de escravos. O objetivo que os abolicionistas colocaram para si mesmos foi o de expor a sua realidade ao público ignorante da sua existência. O senso moral das pessoas faria o resto. Afinal, era o tempo das luzes, das novas idéias a respeito da sociedade, da política e dos direitos.

Mesmo que embasado no espírito de uma época, movimentos sociais exigem líderes convictos. Na Inglaterra, entre os pioneiros estavam os nomes de Granville Sharp, Thomas Clarkson, e William Wilberforce. Foi Clarkson quem, em 1787 – dois anos antes da Revolução Francesa – fundou a Sociedade pela Abolição da Escravidão. Como parte de sua campanha, ele e seus companheiros imprimiram e espalharam pela Inglaterra centenas de cartazes com os famosos diagramas dos navios negreiros, mostrando as condições como eram transportados. Estes diagramas tornaram-se ícones da causa abolicionista: ninguém mais poderia negar os horrores do tráfico. (Os aqui reproduzidos são de Descrição de um navio negreiro, de James Philips, Londres, 1789; em exibição no Peabody-Essex Museum de Salem, Massachusetts).





É claro que as revoltas de escravos desempenharam um papel igualmente importante. As rebeliões, juntamente com o movimento abolicionista, em meio a uma época em que se questionou profundamente todas as tradições do passado, causaram uma revolução do lado de cá do Atlântico.

Clarkson organizou também o que talvez tenha sido o primeiro boicote a um bem de consumo: o boicote ao açúcar, promovido para que os ingleses percebessem a crueldade do que estava por trás do cristal branco que combinava tão bem com o seu chá. 300 mil pessoas aderiram ao boicote, que tinha o objetivo de prejudicar os proprietários de plantações. E inspirou o movimento parlamentar, que apresentou várias propostas contra o comércio de escravos, até que uma delas foi finalmente aprovada, em duas votações, a segunda e definitiva em 25 de março de 1807, há exatos duzentos anos.

22 março 2007

Somos racistas?

Uma polêmica entre Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, e Paula Miranda-Ribeiro, professora da Universidade Federal de Minas Gerais

O jornalista Ali Kamel publicou no ano passado Não somos racistas: Uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor (Nova Fronteira, 144 pgs).

A pesquisadora Paula Miranda-Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais, escreveu uma interessante resenha sobre o livro, no último número da Revista Brasileira de Estudos de População, cujo conteúdo pode ser acessado on-line através do SciElo. Ela diz que o livro de Ali Kamel tem qualidades e que, em geral, seus argumentos são bem embasados. Mas Paula discorda das conclusões.

Sugestivamente, sua resenha tem o mesmo título do livro, mas com o sentido contrário, isto é, sem o “Não”: "Sim, somos racistas”, argumenta Paula Miranda-Ribeiro. (Leia a resenha).

A literatura sobre o assunto é inesgotável. Paula, por exemplo, cita o ótimo Racismo à brasileira, de Edward Telles (Relume-Dumará, 2003).

Acrescento mais alguns:

O Espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930, de Lilia Moritz Schwarcz (Companhia das Letras, 1993)

Gerações de cativeiro: Uma história da escravidão nos Estados Unidos, de Ira Berlin (Record, 2006)

O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro (Companhia das Letras, 2000)

O Brasil visto de fora, de Thomas Skidmore (Paz e Terra, 1994)

Chocolate, piratas e outros malandros, de Kenneth Maxwell (Paz e Terra, 1999)

Inhuman Bondage: The Rise and Fall of Slavery in the New World, de David Brion Davis (Oxford, 2006, ainda inédito em português)

Mas é bom lembrar que o racismo não é algo restrito apenas aos afro-descendentes. Eis, por exemplo, uma excelente obra sobre o anti-semitismo no Brasil:

O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito, de Jeffrey Lesser (Imago, 1994)

02 março 2007

Um oceano de história

O National Maritime Museum de Londres guarda o maior acervo da história da navegação

Nenhuma época acumulou tantas transformações tecnológicas quanto o século 20, um período no qual os carros, os aviões, os trens, e o metrô passaram a fazer parte do nosso cotidiano. O mar, em compensação, tornou-se um lugar remoto, cenários de antigas histórias de navegadores, que poucos de nós temos a chance de experimentar diretamente.

Felizmente, Londres tem um lugar onde talvez seja possível saber mais sobre o mar e suas histórias do que qualquer outro lugar do mundo: o National Maritime Museum de Greenwich, a apenas uma hora de barco do centro de Londres, ou a meia hora de metrô.

Ilha de navegadores, a Inglaterra tem dezenas de lugares para quem se interessa por história marítima. Mas o museu de Greenwich é único: primeiro, porque fica em um complexo que inclui ainda o parque de mesmo nome, o famoso Observatório, dois castelos portentosos do século 17, além do Cutty Sark, o famoso veleiro da garrafa de whisky, aberto a visitação pública. (Quem for lá descobrirá que o lendário barco, quem diria, navegou sob bandeira portuguesa, sob o nome de Ferreirinha, durante o século 19).

Mas o museu marítimo é o coração do passeio: ele reúne a maior coleção de artefatos ligados à navegação de todo o mundo. Está tudo lá: o mar, os barcos, os métodos de medição do tempo – tão importantes para o cálculo da longitude na época da navegação à vela – e as estrelas. Estão lá os astrolábios, mapas e globos; relógios, quadrantes, sextantes e oitantes; os compassos, lunetas e outros instrumentos que guiaram os europeus em direção a novos mundos, a partir do final do século 15, marcando o início de uma nova era. E como não poderia deixar de ser, bem ao lado, o Observatório, cujo objetivo inicial era marcar o tempo com exatidão, para que as embarcações pudessem calcular sua posição no oceano, baseado na medição do tempo e na posição das estrelas.

Para nós, brasileiros, as navegações fazem parte da nossa história não só como nação, mas individualmente. Fora os índios nativos, não há brasileiro que não descenda de alguém que tenha atravessado o oceano de navio em algum período, entre 1500 e a metade do século 20: apenas em 1958 o número de passageiros atravessando o Atlântico de avião superou o tráfego naval. A maioria dos nossos antepassados veio de países como Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, Japão ou outras dezenas, de algum tipo de barco ou navio. Sem falar nos africanos, transportados à força nos infames navios negreiros.

A melhor maneira de chegar a Greenwich é através do Thames. Afinal, há maneira mais adequada de começar uma exploração naval do que tomando o barco em um dos rios mais famosos do mundo, e que é tema de uma das galerias do museu? Também é possível ir de metrô, passando por Canary Wharf, a parte nova da cidade, que já se transformou em vibrante centro financeiro, que também vale uma visita. Seja de barco ou de metrô, Greenwich é definitivamente uma grande pedida em Londres.

Além de instrumentos de navegação de todas as épocas, o grandioso museu abriga também réplicas de embarcações, desde caravelas e galeões do século 16, até um moderno simulador de navegação, na qual o aspirante a lobo do mar é desafiado a atracar em algum porto importante do mundo, sem, é claro, deixar o navio afundar. (No meu caso, escolhi o porto de Londres, e quase me atraquei com uma das pilastras da London Bridge...)

Mas a grande sabedoria do Museu Nacional Marítimo da Inglaterra, que faz dele também uma instituição de prestígio no mundo da pesquisa acadêmica, é entender que a navegação teve sentidos bem diferentes em cada época. Afinal, a história econômica, política e social do mundo está ligada à história dos meios de transportes. É possível, por exemplo, aprender muito sobre o sistema mercantilista, quando navios a vela levavam para as metrópoles os produtos extraídos das colônias, trazendo de volta artigos manufaturados, e entre uma coisa e outra, fazendo o tráfico de escravos. Em terminologia de hoje, começava a globalização. Neste período imperava o comércio de açúcar, chá, rum, tabaco, lã, especiarias, algodão e outros produtos em um comércio triangular entre Europa, Américas e África.

A escravidão fazia parte deste sistema e, claro, não poderia estar ausente em um museu tão completo. Estão lá os registros do 12 milhões de escravos que foram trazidos da África para as Américas a partir do século 16. Apenas em 1660, nada menos do que 3,5 milhões de escravos foram trazidos pelos ingleses para a América do Norte. Cerca de 500 mil morreram durante a travessia.

Com a revolução industrial, entre em cena o navio a vapor. É um período de grandes transformações tecnológicas, que acabam por tornar possível a chamada “grande era” da imigração internacional. Entre 1850 e 1950, nada menos do que 40 milhões de pessoas atravessaram o Atlântico da Europa para o Novo Mundo, no maior movimento populacional da história. A maior parte, cerca de 30 milhões, tiveram como destino os Estados Unidos. Cinco milhões vieram para o Brasil. Neste período, os barcos se transformam em máquinas cada vez mais complexas, cada vez maiores, até chegar às proporções de verdadeiras cidades marítimas. Os navios deste período, é claro, estão representados através de maquetes, modelos, partes de motores, réplicas das cabines. Também está lá todo o frisson que representava viajar nos transatlânticos de luxo do início do século, à bordo da exclusiva primeira classe.

A grandeza do Museu de Navegação de Greenwich está no fato de jamais perder de vista o papel que a navegação teve nos últimos séculos enquanto fenômeno político, social e econômico. Talvez seja por isso que ele tenha recebido o prêmio de excelência dos museus britânicos, em um país se orgulha de ter alguns das melhores instituições no gênero do mundo.

Numa época em que as grandes explorações eram fonte de inspiração para os artistas, a pintura sobre temas navais é parte importante do acervo. São imagens onde estão retratados símbolos de identidade nacional e história, em uma era de impérios em expansão. A abertura para novos mundos e novos povos, revolucionou a cabeça dos pensadores, filósofos e cientistas e artistas europeus desde então.

Para crianças das mais diversas idades o museu é um prato cheio: há muita coisa com finalidade educativa, como uma sessão inteiramente dedicada á poluição dos mares, e um planetário. Outra sessão, dedicada às atuais pesquisas em oceanografia, dão um toque excitante de ciência moderna.

Afinal, o oceano volta a ser, neste início de século, território de explorações inusitadas. As viagens do século 16, e as tecnologias desde então desenvolvidas, mudaram não só a geografia mas também a história, a ciência e o próprio mundo tal qual o conhecemos hoje. Agora, ao entrarmos em um novo milênio, teria a era das explorações oceânicas passado? Ou estamos a beira de descobertas que mudarão nosso universo, tal qual uma vez mudaram o globo? Se há um bom lugar para se meditar sobre isso é certamente no Museu de Navegação de Greenwich.

Serviço: National Maritime Museum e Royal Observatory, Greenwich. Aberto de 10:00 às 17:00, todos os dias. Site: http://www.nmm.ac.uk/

10 fevereiro 2007

Os dez melhores livros de ciência

O que escritores como Primo Levi, Brecht e Stephen Pinker têm em comum? Eles estão entre os autores dos dez mais importantes livros de ciência já publicados, de acordo com uma centenária instituição inglesa

A tabela periódica, do escritor Primo Levi, foi escolhido como o melhor livro jamais publicado sobre algum assunto relacionado à ciência. Nele, seu terceiro conjunto de ensaios, na maior parte auto-biográficos, o químico judeu que sobreviveu a Auschwitz faz referência aos elementos da tabela periódica como metáfora para falar de suas raízes familiares, sua juventude na Itália, e da série de eventos dramáticos que o levaram da resistência anti-fascista a um campo de concentração na Polônia. Primio Levi morreu em 1987, ao cair da sacada de seu apartamento, em Turin, no que acredita-se que tenha sido suicídio. Ele encabeça uma lista publicada pela Royal Institution, centenária instituição científica, na qual ironicamente consta também Konrad Lorenz, o pai da etologia. Embora depois tenha se retratado, Lorenz foi filiado ao partido nazista. Constam também entre os campeões o roteirista Tom Stoppard e o biólogo Richard Dawkins.

O critério foi tanto científico como literário, já que cientistas dos séculos 19 e 20, além de dramaturgos e roteiristas, foram aclamados. Estão na lista, por exemplo, Stephen Pinker, o contemporâneo pioneiro da ciência cognitiva, autor do polêmico Tábula Rasa, e o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, por sua peça Vida de Galileu. Está lá também Darwin (pelo relato A viagem do Beagle e não pela Origem das espécies), e o Prêmio Nobel James Watson, descobridor do DNA (A dupla hélice).

Tom Stoppard, o roteirista de Shakespeare Apaixonado (Oscar de 1998), e do clássico Brazil, do ex-Monty Python Terry Gilliam, foi indicado por Arcadia, texto ainda inédito por aqui. Na peça, que convida o leitor a viajar no tempo entre os séculos 19 e 20, um grupo de personagens representa seus respectivos dramas. Stoppard explora temas como a natureza da verdade e do tempo, as diferenças entre o temperamento romântico e o moderno, e o papel confuso que o sexo ganhou no mundo de hoje.

Outro inédito é King Solomon’s Ring do zoologista, psicólogo e ornitologista Konrad Lorenz. Nascido em Viena, criador da etologia, a ciência que estuda o comportamento animal, Lorenz tem diversos livros publicados no Brasil (mas não este). O escritor John Turney, que presidiu o evento, jusitificou a escolha da seguinte forma: "It's the most charming book ever written by a Nazi" (traduzível por “o livro mais charmoso jamais escrito por um nazista”). Lorenz era filiado ao partido, e foi recrutado para a Wermacht em 1941. Embora quisesse servir como mecânico de motocicletas, foi designado médico do exército alemão. Por isso, amargou um período nos campos de prisioneiros da ex-União Soviética. Depois, já reconhecido por seu trabalho científico, ganhou o Prêmio Nobel, e desculpou-se publicamente pela mancha na biografia.

Gene Egoísta, de Richard Dawkins, publicado em 1976, aclamado como divisor de águas nas ciências comportamentais, foi diversas vezes publicado no Brasil. Dawkins também é etologista e biólogo. Nascido em Nairobi, é radicado na Inglaterra.

Oliver Sacks, o neurologista inglês radicado em Nova York, não ficou de fora. Descendente de uma nobre linhagem de neurologistas, professor do Albert Einstein College of Medicine, escritor de raro talento que fez sucesso no Brasil com Um antropólogo em Marte, foi classificado pelo seu Com uma perna só.

Entre os dez livros, três nunca foram publicados no Brasil, e dois estão fora de catálogo, inclusive Vida de Galileu. No que diz respeito às editoras, a Companhia das Letras é a única presente com mais de um título.

A seguir, os vencedores, com as edições em português, quando disponíveis:

Primo Levi – A tabela periódica (Relume Dumará, 2001)
Konrad Lorenz – King Solomon’s Ring
Tom Stoppard – Arcadia
Richard Dawkins – Gene Egoísta (Itatiaia, 2001)

Também se classificaram:

James Watson – A dupla hélice (Gradiva, 2003)
Bertolt Brecht –Vida de Galileu (Civilização Brasileira, 1978)
Peter Medewar – Pluto’s Republic
Charles Darwin – A viagem do Beagle
Stephen Pinker – Tábula Rasa (Companhia das Letras, 2004)
Oliver Sacks – Com uma perna só (Companhia das Letras, 2002)

Claro que o valor literário contou tanto quanto o conteúdo científico. Basta lembra desta cena inicial de Vida de Galileu (leia a seguir). Nela, Brecht faz um empolgante discurso a favor das luzes, da ciência e do conhecimento, contra a escuridão e as trevas.

Vida de Galileu

Bertolt Brecht

Primeira parte

Galileu Galilei, professor de matemática em Pádua, quer demonstrar o novo sistema copernicano do universo

Quarto de estudo de Galileu, em Pádua; o aspecto é pobre. É de manhã. O menino Andrea, filho da governanta, traz um copo de leite e um pão.

GALILEU (lavando o tórax, fungando alegre) - Ponha o leite na mesa, mas não feche os livros.

ANDREA - Seu Galileu, minha mãe disse que, se nós não pagarmos o leiteiro, ele vai dar um círculo em volta de nossa casa e não vai mais deixar o leite.

GALILEU - Está errado, Andrea; ele "descreve um círculo".

ANDREA - Como o senhor quiser, seu Galileu. Se nós não pagarmos, ele descreve um círculo.

GALILEU - Já o oficial de justiça, o seu Cambione, vem direto pra cima de nós, escolhendo qual percurso entre dois pontos?

ANDREA (rindo) - O mais curto.

GALILEU - Bom. Eu tenho uma coisa para você. Veja atrás dos mapas astronômicos.

Andrea pesca atrás dos mapas, de onde tira um grande modelo do sistema ptolomaico, feito de madeira.

ANDREA - O que é isso?

GALILEU – É um astrolábio; é para mostrar como as estrelas se movem à volta da Terra, segundo a opinião dos antigos.

[. . .]

ANDREA (move as esferas) - É bonito. Mas nós estamos fechados lá no meio.

GALILEU (se enxugando) - É, foi o que eu também senti, quando vi esta coisa pela primeira vez. Há mais gente que sente assim. (Joga a toalha a Andrea para que ele lhe esfregue as costas.) Muros e cascas, tudo parado! Há dois mil anos a humanidade acreditou que o Sol e as estrelas do céu giram em torno dela. O papa, os cardeais, os príncipes, os sábios, capitães, comerciantes, peixeiras e crianças de escola, todos achando que estão imóveis nessa bola de cristal. Mas agora nós vamos sair para fora, Andrea, para uma grande viagem. Porque o tempo antigo acabou, e agora é um tempo novo. Já faz cem anos que a humanidade está esperando alguma coisa.

As cidades são estreitas, e as cabeças também. Superstição e peste. Mas agora, veja o que se diz: se as coisas são assim, assim não vão ficar. Tudo se move, meu amigo. Gosto de pensar que tudo tenha começado com os navios. Desde que há memória, eles vinham se arrastando ao longo da costa, mas, de repente, deixaram a costa e exploraram os mares todos.

Em nosso velho continente nascia um boato: existem continentes novos. E agora que os nossos barcos navegam até lá, a risada é geral nos continentes. O que se diz é que o grande mar temido é uma lagoa pequena. E surgiu um grande gosto pela pesquisa da causa de todas as coisas: saber por que cai a pedra se a soltamos, e como sobe a pedra que arremessamos. Não há dias em que não se descubra alguma coisa. Até os velhos e os surdos puxam conversa para saber das últimas novidades.

Já se descobriu muita coisa, mas há mais coisas ainda que poderão ser descobertas. De modo que também as novas gerações têm o que fazer.

Em Siena, quando moço, vi uma discussão de cinco minutos sobre a melhor maneira de mover blocos de granito; em seguida, os pedreiros abandonaram uma técnica milenar e adotaram uma disposição nova e mais inteligente das cordas. Naquele lugar e naquele minuto fiquei sabendo: o tempo antigo passou, e agora é um tempo novo. Logo a humanidade terá uma idéia clara de sua casa, do corpo celeste que ela habita. O que está nos livros antigos não lhe basta mais.

Pois onde a fé teve mil anos de assento, sentou-se agora a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos livros -, mas agora nós queremos ver com nossos olhos.

As verdades mais consagradas são tratadas sem-cerimônia; o que era indubitável, agora é posto em dúvida. Em conseqüência, formou-se um vento que levanta as batinas brocadas dos príncipes e prelados, e põe à mostra pernas gordas e pernas de palito, pernas como as nossas pernas. Mostrou-se que os céus estavam vazios, o que causou uma alegre gargalhada.

Mas as águas da Terra fazem girar as novas roscas, e nos estaleiros, nas casas de cordame e de velame, quinhentas mãos se movem em conjunto, organizadas de maneira nova.

Predigo que a astronomia será comentada nos mercados, ainda em tempos de nossa vida. Mesmo os filhos das peixeiras quererão ir à escola. Pois os habitantes de nossas cidades, sequiosos de tudo que é novo, gostarão de uma astronomia nova, em que também a Terra se mova. O que constava é que as estrelas estão presas a uma esfera de cristal para que não caiam. Agora juntamos coragem, e deixamos que flutuem livremente, desancoradas e elas estão em grande viagem, como as nossas caravelas, desancoradas e em grande viagem.

E a Terra rola alegremente em volta do Sol, e as mercadoras de peixe, os comerciantes, os príncipes e os cardeais, e mesmo o papa, rolam com ela.

Uma noite bastou para que o universo perdesse o seu ponto central; na manhã seguinte, tinha uma infinidade deles. De modo que agora qualquer um pode ser visto como centro, ou nenhum. Subitamente há muito lugar. Nossos navios viajam longe. As nossas estrelas giram no espaço longínquo, e mesmo no jogo de xadrez, agora a torre atravessa o tabuleiro de lado a lado. Como diz o poeta: "Ó manhã de inícios!..."

21 janeiro 2007

No país dos decibéis

Claudio de Moura Castro

"Será que o baixo crescimento da economia
não seria o resultado do excesso de barulho?"


Ao fazer as malas para o Brasil, após quinze anos na Suíça e nos Estados Unidos, assaltava-me o temor de um choque cultural. Como a Batalha de Itararé, o choque não ocorreu, foi ajustamento instantâneo. Mas houve uma exceção: o choque dos decibéis.

Eu vinha de uma Suíça onde em muitos edifícios é proibido tomar banho e puxar a descarga após as 10 horas da noite. Os ônibus são silenciosos, e aviões barulhentos não pousam lá. Os cachorros não latem, e as crianças não berram. É proibido cortar grama aos domingos, por causa do barulho das máquinas. Lá eclodiu um célebre processo judicial contra os cincerros das vaquinhas que incomodavam um vizinho. Fiquei mal-acostumado, adquiri hábitos alienados.

Aqui estou, depositado no país dos decibéis. Ônibus e caminhões urram dentro da lei dos 88 decibéis máximos, quando na Europa a norma é 74 (sendo a escala de decibéis logarítmica, o volume de som é muitas vezes maior!). Muitos urram fora da lei. Uivam motos sem silenciosos. Os pneus cantam nas curvas. A cachorrada da vizinhança tem cordas vocais de aço-molibdênio. As igrejas e os cultos confundem decibéis com fé.

A obra-prima da agressão sonora são uns automóveis cujos porta-malas se abrem revelando uma bateria de alto-falantes, terrível usina de decibéis. Felizmente, algumas cidades turísticas estão comprando decibelímetros, para não perder clientes antiquados como eu.

As salas de aula não têm tratamento acústico. Parece até que foram planejadas para maximizar a refletância ambiente (as piores são as dos Cieps). A norma da ABNT para salas de aula estipula um máximo de 40 a 50 decibéis, mas o nível de ruído atinge 75 em casos comprovados. O ruído impede a atenção ou mesmo impede de ouvir o professor. Em quantos pontos faz cair o rendimento dos alunos brasileiros?

Nos restaurantes, a barulheira não está no cardápio, mas é parte do serviço. É como se o objetivo de manter uma conversação relaxada e inteligente fosse coisa subversiva, a ser impedida pelas múltiplas ressonâncias – amplificadas pelas superfícies lisas e paralelas. Um proprietário experiente disse que restaurante silencioso espanta clientes.

Parece que o choque de gerações se concentra nos decibéis. Na música, são o sonho de consumo, indo muito além dos níveis máximos das normas de saúde ocupacional. E, diante dos que reclamam, a polícia candidamente confessa não saber bem o que fazer nem qual unidade cuida do assunto. Ou, então, vai inspecionar no dia seguinte ao da festa.

O que menos me incomoda é a música das boates, apesar de ensurdecedora. É que, após uma experiência traumatizante, aprendi minha lição. Não entro nelas em hipótese nenhuma. Se lá dentro estivesse, de bom grado pagaria para sair.

Segundo os padrões da Organização Mundial da Saúde (OMS), 65 decibéis marcam o limiar do que faz mal à saúde – dependendo do tempo de exposição. Verificou-se que ruído excessivo aumenta a adrenalina, provoca alta de pressão, stress, insônia e (em Berlim) aumenta em 20% a probabilidade de infarto. Nos Estados Unidos, 10 milhões de pessoas perderam a audição (ou parte dela) por excesso de ruído – e parece que os números aumentam. Lá, o seguro-saúde é mais caro para quem trabalha em lugares barulhentos. Entre nós, quantos milhões convivem com muito mais decibéis do que a lei permite em fábricas? Uma banda de rock emite tantos malditos decibéis quanto uma turbina de avião (130 decibéis).

O ruído nas ruas, nas escolas e nos hospitais costuma estar acima do máximo da OMS. Será possível aprender em salas de aula tão ruidosas? Por que ignorar os males que faz à saúde? Será que o baixo crescimento da economia não seria o resultado do excesso de barulho? A sociedade não estaria sendo anestesiada ou hipnotizada por uma forma sinistra de conspiração sonora?

Manifesto a minha revolta auditiva contra um povo que confunde alegria com barulho. Parece que música alta libera hormônios, dando um "barato". Que seja. Mas o prazer de uns poucos não pode ser à custa do incômodo de outros. O som que me incomoda invadiu ilegalmente a minha privacidade. Temos o direito ao silêncio.