24 março 2007

Os 200 anos da abolição (na Inglaterra)

Há exatos 200 anos, o parlamento inglês aprovava uma lei proibindo o comércio de escravos em todo o Império Britânico

Ao se comemorar os 200 anos da abolição do comércio de escravos no Império Britânico, ainda falta muito para que possamos compreender em toda sua dimensão o período de quatro séculos no qual a escravidão e a navegação estiveram intrinsecamente ligadas à colonização das Américas. Em 25 de março de 1807, depois de vinte anos de campanha abolicionista, o Parlamento inglês decretou a ilegalidade do comércio de escravos, um ato que teria conseqüências fundamentais do outro lado do Atlântico. A partir de então, ao longo de uma série de medidas destinadas a extinguir o comércio, e depois a própria escravidão, a Inglaterra passou a reprimir o tráfico praticado por outras potências. O que fora parte integral da relação entre colônias americanas e suas metrópoles européias entre os séculos 15 e 19 começou lentamente a ser visto como uma aberração.



Nos últimos anos muito se pesquisou sobre a escravidão, esta instituição que marcou de forma tão profunda as colônias do Novo Mundo, e de forma particular, o Brasil. Um marco nessa historiografia é o recém-publicado Inhuman Bondage: The Rise and Fall of Slavery in the New World (Oxford University Press, 2006). O autor, diretor do Instituto de Estudos de Escravidão, Resistência e Abolição da Universidade de Yale, reuniu muito do que se produziu nas últimas décadas para compor um quadro panorâmico desta instituição tão profundamente ligada às nossas raízes.

Brion Davis mostra como o conceito de escravidão tem origens na Antiguidade e de alguma forma perpassa todas as grandes religiões. Mas foi com o “comércio triangular” através do qual os navios europeus exportavam artigos manufaturados (roupas, armas, objetos de metal) em troca de escravos, e estes por produtos naturais (açúcar, prata, madeira, café), fazendo uma navegação circular entre Europa, África e América, que fez com que o os africanos se tornassem integrais à história do Novo Mundo. O processo pode hoje ser visto, em retrospecto, como a primeira grande onda de globalização.

Por volta da metade do século 18, não só ingleses, mas franceses, portugueses, espanhóis, enfim, todos os grandes impérios da época enriqueciam com o “comércio triangular”. O maior império escravista, no entanto, era o inglês. Como lembra Brion Davis, “o comércio escravista, e seus desdobramentos, foram uma imensa fonte de riqueza e poder para a Inglaterra”. Dadas as suas proporções, é notável que a campanha abolicionista, que começou em 1787, tenha alcançado sucesso em apenas vinte anos.

A Inglaterra não era o único império escravista, mas seu inigualável poder marítimo fazia com que a escravidão nas suas colônias fosse um caso único em termos de alcance, tamanho e interação com outras instituições sociais e políticas - relação esta que era constantemente transformada e adaptada.






O começo do século 19 assistiu a uma enorme mudança de escala e natureza desta interação. Não se tratou de fenômeno isolado, mas parte de uma série de transformações que forjaram o nascimento do mundo moderno. Esta era turbulenta, caracterizada por forças contraditórias (revolução e reação, liberdade e imperialismo, guerra e paz, iluminismo e escravidão) teve como uma de suas consequências fazer com que as relações políticas e econômicas da Inglaterra com as colônias fossem sacudidas. E inaugurasse uma nova era na história do Novo Mundo.

Mas muitas perguntas ainda estão sem resposta. Qual foi, por exemplo, a dimensão exata desta migração forçada, o primeiro grande movimento populacional da história? As estimativas variam. Os historiadores hoje concordam que algo entre 11 e 12 milhões de africanos foram transportados através do Atlântico, entre os séculos 15 e 19, nas condições mais desumanas possíveis. Mas há quem chegue até os 20 milhões.

Quantos morreram na travessia, em uma época em que se calcula que um em cada cinco navios que tentavam atravessar o Oceano naufragavam?

O que se sabe é que o Brasil foi o segundo maior destino de africanos, perdendo apenas para as ilhas do Caribe, incluindo Cuba. Entre 1820 e 1880, quando a Inglaterra já tinha declarado o comércio ilegal, e ameaçava afundar qualquer navio transportando escravos através do Atlântico, mais de dois milhões foram trazidos para o Brasil e para Cuba. A mortalidade era tão alta que se fazia necessário um fluxo constante, apenas para manter o estoque existente.

Embora muitos lucrassem com o comércio escravista, na maior parte os europeus sequer sabiam de sua existência. Na própria Inglaterra não havia escravidão; portanto, não havia razão para os ingleses lidarem com esta verdade inconveniente.

O meio pelo qual o açúcar chegava às mesas européias era cuidadosamente escondido através de eufemismos: não havia tráfico, mas sim “aventuras na África”. Por trás das aparências, no entanto, começou a correr um sentimento que algo estava errado. Principalmente ao alvorecer das luzes, a partir do momento que começava a ganhar influência cada vez maior o iluminismo, com sua promessa de pautar a ação humana pela razão.

O sentimento de culpa provou ser o tendão de Aquiles do tráfico de escravos. O objetivo que os abolicionistas colocaram para si mesmos foi o de expor a sua realidade ao público ignorante da sua existência. O senso moral das pessoas faria o resto. Afinal, era o tempo das luzes, das novas idéias a respeito da sociedade, da política e dos direitos.

Mesmo que embasado no espírito de uma época, movimentos sociais exigem líderes convictos. Na Inglaterra, entre os pioneiros estavam os nomes de Granville Sharp, Thomas Clarkson, e William Wilberforce. Foi Clarkson quem, em 1787 – dois anos antes da Revolução Francesa – fundou a Sociedade pela Abolição da Escravidão. Como parte de sua campanha, ele e seus companheiros imprimiram e espalharam pela Inglaterra centenas de cartazes com os famosos diagramas dos navios negreiros, mostrando as condições como eram transportados. Estes diagramas tornaram-se ícones da causa abolicionista: ninguém mais poderia negar os horrores do tráfico. (Os aqui reproduzidos são de Descrição de um navio negreiro, de James Philips, Londres, 1789; em exibição no Peabody-Essex Museum de Salem, Massachusetts).





É claro que as revoltas de escravos desempenharam um papel igualmente importante. As rebeliões, juntamente com o movimento abolicionista, em meio a uma época em que se questionou profundamente todas as tradições do passado, causaram uma revolução do lado de cá do Atlântico.

Clarkson organizou também o que talvez tenha sido o primeiro boicote a um bem de consumo: o boicote ao açúcar, promovido para que os ingleses percebessem a crueldade do que estava por trás do cristal branco que combinava tão bem com o seu chá. 300 mil pessoas aderiram ao boicote, que tinha o objetivo de prejudicar os proprietários de plantações. E inspirou o movimento parlamentar, que apresentou várias propostas contra o comércio de escravos, até que uma delas foi finalmente aprovada, em duas votações, a segunda e definitiva em 25 de março de 1807, há exatos duzentos anos.

22 março 2007

Somos racistas?

Uma polêmica entre Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, e Paula Miranda-Ribeiro, professora da Universidade Federal de Minas Gerais

O jornalista Ali Kamel publicou no ano passado Não somos racistas: Uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor (Nova Fronteira, 144 pgs).

A pesquisadora Paula Miranda-Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais, escreveu uma interessante resenha sobre o livro, no último número da Revista Brasileira de Estudos de População, cujo conteúdo pode ser acessado on-line através do SciElo. Ela diz que o livro de Ali Kamel tem qualidades e que, em geral, seus argumentos são bem embasados. Mas Paula discorda das conclusões.

Sugestivamente, sua resenha tem o mesmo título do livro, mas com o sentido contrário, isto é, sem o “Não”: "Sim, somos racistas”, argumenta Paula Miranda-Ribeiro. (Leia a resenha).

A literatura sobre o assunto é inesgotável. Paula, por exemplo, cita o ótimo Racismo à brasileira, de Edward Telles (Relume-Dumará, 2003).

Acrescento mais alguns:

O Espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930, de Lilia Moritz Schwarcz (Companhia das Letras, 1993)

Gerações de cativeiro: Uma história da escravidão nos Estados Unidos, de Ira Berlin (Record, 2006)

O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro (Companhia das Letras, 2000)

O Brasil visto de fora, de Thomas Skidmore (Paz e Terra, 1994)

Chocolate, piratas e outros malandros, de Kenneth Maxwell (Paz e Terra, 1999)

Inhuman Bondage: The Rise and Fall of Slavery in the New World, de David Brion Davis (Oxford, 2006, ainda inédito em português)

Mas é bom lembrar que o racismo não é algo restrito apenas aos afro-descendentes. Eis, por exemplo, uma excelente obra sobre o anti-semitismo no Brasil:

O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito, de Jeffrey Lesser (Imago, 1994)

02 março 2007

Um oceano de história

O National Maritime Museum de Londres guarda o maior acervo da história da navegação

Nenhuma época acumulou tantas transformações tecnológicas quanto o século 20, um período no qual os carros, os aviões, os trens, e o metrô passaram a fazer parte do nosso cotidiano. O mar, em compensação, tornou-se um lugar remoto, cenários de antigas histórias de navegadores, que poucos de nós temos a chance de experimentar diretamente.

Felizmente, Londres tem um lugar onde talvez seja possível saber mais sobre o mar e suas histórias do que qualquer outro lugar do mundo: o National Maritime Museum de Greenwich, a apenas uma hora de barco do centro de Londres, ou a meia hora de metrô.

Ilha de navegadores, a Inglaterra tem dezenas de lugares para quem se interessa por história marítima. Mas o museu de Greenwich é único: primeiro, porque fica em um complexo que inclui ainda o parque de mesmo nome, o famoso Observatório, dois castelos portentosos do século 17, além do Cutty Sark, o famoso veleiro da garrafa de whisky, aberto a visitação pública. (Quem for lá descobrirá que o lendário barco, quem diria, navegou sob bandeira portuguesa, sob o nome de Ferreirinha, durante o século 19).

Mas o museu marítimo é o coração do passeio: ele reúne a maior coleção de artefatos ligados à navegação de todo o mundo. Está tudo lá: o mar, os barcos, os métodos de medição do tempo – tão importantes para o cálculo da longitude na época da navegação à vela – e as estrelas. Estão lá os astrolábios, mapas e globos; relógios, quadrantes, sextantes e oitantes; os compassos, lunetas e outros instrumentos que guiaram os europeus em direção a novos mundos, a partir do final do século 15, marcando o início de uma nova era. E como não poderia deixar de ser, bem ao lado, o Observatório, cujo objetivo inicial era marcar o tempo com exatidão, para que as embarcações pudessem calcular sua posição no oceano, baseado na medição do tempo e na posição das estrelas.

Para nós, brasileiros, as navegações fazem parte da nossa história não só como nação, mas individualmente. Fora os índios nativos, não há brasileiro que não descenda de alguém que tenha atravessado o oceano de navio em algum período, entre 1500 e a metade do século 20: apenas em 1958 o número de passageiros atravessando o Atlântico de avião superou o tráfego naval. A maioria dos nossos antepassados veio de países como Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, Japão ou outras dezenas, de algum tipo de barco ou navio. Sem falar nos africanos, transportados à força nos infames navios negreiros.

A melhor maneira de chegar a Greenwich é através do Thames. Afinal, há maneira mais adequada de começar uma exploração naval do que tomando o barco em um dos rios mais famosos do mundo, e que é tema de uma das galerias do museu? Também é possível ir de metrô, passando por Canary Wharf, a parte nova da cidade, que já se transformou em vibrante centro financeiro, que também vale uma visita. Seja de barco ou de metrô, Greenwich é definitivamente uma grande pedida em Londres.

Além de instrumentos de navegação de todas as épocas, o grandioso museu abriga também réplicas de embarcações, desde caravelas e galeões do século 16, até um moderno simulador de navegação, na qual o aspirante a lobo do mar é desafiado a atracar em algum porto importante do mundo, sem, é claro, deixar o navio afundar. (No meu caso, escolhi o porto de Londres, e quase me atraquei com uma das pilastras da London Bridge...)

Mas a grande sabedoria do Museu Nacional Marítimo da Inglaterra, que faz dele também uma instituição de prestígio no mundo da pesquisa acadêmica, é entender que a navegação teve sentidos bem diferentes em cada época. Afinal, a história econômica, política e social do mundo está ligada à história dos meios de transportes. É possível, por exemplo, aprender muito sobre o sistema mercantilista, quando navios a vela levavam para as metrópoles os produtos extraídos das colônias, trazendo de volta artigos manufaturados, e entre uma coisa e outra, fazendo o tráfico de escravos. Em terminologia de hoje, começava a globalização. Neste período imperava o comércio de açúcar, chá, rum, tabaco, lã, especiarias, algodão e outros produtos em um comércio triangular entre Europa, Américas e África.

A escravidão fazia parte deste sistema e, claro, não poderia estar ausente em um museu tão completo. Estão lá os registros do 12 milhões de escravos que foram trazidos da África para as Américas a partir do século 16. Apenas em 1660, nada menos do que 3,5 milhões de escravos foram trazidos pelos ingleses para a América do Norte. Cerca de 500 mil morreram durante a travessia.

Com a revolução industrial, entre em cena o navio a vapor. É um período de grandes transformações tecnológicas, que acabam por tornar possível a chamada “grande era” da imigração internacional. Entre 1850 e 1950, nada menos do que 40 milhões de pessoas atravessaram o Atlântico da Europa para o Novo Mundo, no maior movimento populacional da história. A maior parte, cerca de 30 milhões, tiveram como destino os Estados Unidos. Cinco milhões vieram para o Brasil. Neste período, os barcos se transformam em máquinas cada vez mais complexas, cada vez maiores, até chegar às proporções de verdadeiras cidades marítimas. Os navios deste período, é claro, estão representados através de maquetes, modelos, partes de motores, réplicas das cabines. Também está lá todo o frisson que representava viajar nos transatlânticos de luxo do início do século, à bordo da exclusiva primeira classe.

A grandeza do Museu de Navegação de Greenwich está no fato de jamais perder de vista o papel que a navegação teve nos últimos séculos enquanto fenômeno político, social e econômico. Talvez seja por isso que ele tenha recebido o prêmio de excelência dos museus britânicos, em um país se orgulha de ter alguns das melhores instituições no gênero do mundo.

Numa época em que as grandes explorações eram fonte de inspiração para os artistas, a pintura sobre temas navais é parte importante do acervo. São imagens onde estão retratados símbolos de identidade nacional e história, em uma era de impérios em expansão. A abertura para novos mundos e novos povos, revolucionou a cabeça dos pensadores, filósofos e cientistas e artistas europeus desde então.

Para crianças das mais diversas idades o museu é um prato cheio: há muita coisa com finalidade educativa, como uma sessão inteiramente dedicada á poluição dos mares, e um planetário. Outra sessão, dedicada às atuais pesquisas em oceanografia, dão um toque excitante de ciência moderna.

Afinal, o oceano volta a ser, neste início de século, território de explorações inusitadas. As viagens do século 16, e as tecnologias desde então desenvolvidas, mudaram não só a geografia mas também a história, a ciência e o próprio mundo tal qual o conhecemos hoje. Agora, ao entrarmos em um novo milênio, teria a era das explorações oceânicas passado? Ou estamos a beira de descobertas que mudarão nosso universo, tal qual uma vez mudaram o globo? Se há um bom lugar para se meditar sobre isso é certamente no Museu de Navegação de Greenwich.

Serviço: National Maritime Museum e Royal Observatory, Greenwich. Aberto de 10:00 às 17:00, todos os dias. Site: http://www.nmm.ac.uk/