18 dezembro 2006

Uma certa Aracy, um chamado João

A Folha publicou na segunda-feira, 18 de dezembro, meu artigo sobre Aracy Guimarães Rosa. Como o texto foi editado, reproduzo aqui a versão original. (Veja também fotos inéditas no FotoBlog)

“A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Com esta simples epígrafe, começa uma das maiores epopéias da história da literatura mundial, Grande Sertão: Veredas. No entanto, ao se comemorar os 50 anos da publicação do livro mais importante de João Guimarães Rosa, pouco – ou nada – se falou sobre a mulher que teve um papel fundamental na vida do maior escritor brasileiro do século 20, comparado a Thomas Mann, Jorge Luís Borges e outros grandes mestres.

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, hoje com 98 anos, foi a sua segunda mulher. Mas enquanto escritor maduro, foi sua grande e única companheira: ficaram juntos 30 anos. Ambos haviam sido casados antes, e os dois tinham filhos do primeiro casamento. Mas foram uniões que duraram pouco. Ele casou-se pela primeira vez, em 1930, aos 22 anos, médico recém-formado, com um grande talento para as letras, mas que ainda não havia florescido plenamente.

Aracy, que viria a conhecer em Hamburgo, em 1938, foi a sua grande inspiradora, personagem, companheira, e interlocutora privilegiada durante o período mais importante da sua vida e obra. Enfim, foi sua Simone de Beauvoir. “Aracy viveu 30 anos com ele, desde o primeiro livro importante, Sagarana, até a sua morte”, lembra Neuma Cavalcante, professora da Universidade Federal do Ceará. “Ela lia, opinava, sugeria, discutia, participava ativamente da obra. De certa forma ela é co-autora. Tanto que o Grande Sertão não é dedicado; é dado: ele doou o livro à Aracy, como diz a epígrafe. Isto é muito significativo”.

Se Aracy teve papel tão importante na vida de um dos maiores nomes da literatura mundial, porque sua imagem está tão apagada neste ano em que se comemora o cinqüentenário da saga de Riobaldo e Diadorim? “Ela deveria ser mais lembrada. A questão é que eles eram discretos na vida pessoal. Ela ficava afastada dos holofotes enquanto ele aparecia. Mas o papel dela não pode ser subestimado”, diz Neuma Cavalcante. Discreta, sem jamais ter caído na tentação de se promover por ter sido quem foi, Aracy paga hoje o preço do esquecimento. Sua influência sobre o escritor tem sido negligenciada pela crítica, pelos historiadores da literatura, e pela mídia.

Há quem acredite que ela serviu de inspiração para Diadorim, a personagem do Grande Sertão. Aracy tinha certamente algo de Hannah Arendt, a extraordinária filósofa alemã, autora de Origens do totalitarismo e A condição humana, e que fez da própria vida um ato de luta contra as trevas. Aracy desafiou o nazismo, o Estado Novo de Getúlio, e a ditadura militar brasileira. Além disso, era culta, poliglota, e segundo alguns, uma das mulheres mais atraentes de seu tempo. “Não me admira em nada que Guimarães Rosa tenha se apaixonado por ela”, diz José Gregori, presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos, e ex-ministro da Justiça. "Era uma mulher de uma rara beleza, competente, e praticava um tipo raro de solidariedade". Enfim, uma personalidade a altura do espírito inquieto do grande escritor.

“Rosa praticava aquilo que os alemães chamam de ‘amizade combatente’: atuava a favor do amigo, sem esperar que este lhe pedisse ajuda”, lembrou o jornalista e crítico literário Franklin de Oliveira. Aracy também. Em 1937 ela salva judeus do nazismo. Em 1964, já no Rio, junto com o escritor, tentam esconder o próprio Franklin de Oliveira, procurado pelos militares. Em 1968, o escritor já morto, Aracy esconde o cantor e compositor Geraldo Vandré, caçado pela ditadura pós-AI-5.

“Aracy era a grande personagem da vida dele”, diz Neuma Cavalcante, que está escrevendo sua biografia (com Elza Mine, professora do departamento de Língua e Filologia Portuguesa da USP). O livro, que deve ser publicado no ano que vem, é baseado no seu acervo, incluindo recortes de jornais, anotações e, principalmente, a correspondência entre os dois.

1937. Ele, já separado da primeira mulher, chega a Hamburgo como cônsul adjunto, em momento particularmente dramático: às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

“Em 1934, Rosa fez o concurso para o Itamarati, tendo conquistado o segundo lugar. Via na diplomacia um meio de conhecer o mundo, coisa que, como menino pobre, jamais poderia fazer”, conta Franklin de Oliveira, em uma introdução do Grande Sertão, que desapareceu injustificadamente das últimas edições (veja abaixo). “Seu primeiro posto na carreira foi na Alemanha, onde conheceu sua segunda mulher, que seria a companheira de toda a vida – Aracy Moebius de Carvalho, que ele tratava carinhosamente de Ara”.

Diadorim ou Hannah Arendt?

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, nascida Moebius de Carvalho, no interior do Paraná, já separada, foi para a Alemanha no início dos anos 30 morar com uma tia e o filho do primeiro casamento, Eduardo Tess. Como falava bem alemão, inglês e francês, conseguiu uma nomeação para o consulado brasileiro em Hamburgo. Acabou sendo encarregada da seção de vistos.

Quando Guimarães Rosa chega a Hamburgo, já separado da primeira mulher, entra em vigor a Circular Secreta 1.127, que restringia a entrada de judeus no Brasil – consequência do fascínio que Getúlio Vargas sentiu pelos regimes de Hitler e Mussolini, e que o americanista Jeffrey Lesser descreve muito bem no livro O Brasil e a questão judaica.

Contrariando ordens do Itamarati, Aracy cria esquemas para burlar a atenção do cônsul geral – que, de simpatizante dos judeus, subitamente se descobriu um anti-semita de primeira hora –, salvando assim a vida de muitos.

“Minha mãe resolveu ignorar a circular que proibia a concessão de vistos a judeus, achou aquilo um absurdo, e por risco e conta dela continuou a preparar os processos, à revelia das ordens do Itamarati e de seus superiores no consulado. Como ela despachava outras coisas com o cônsul geral, no meio dos papéis enfiava os vistos. Muitos judeus vinham de outras cidades mas para que os seus passaportes pudessem ser processados em Hamburgo, tinham que provar que moravam na região. Ela conseguia os atestados, e quando entravam com os papéis, já tinham esta dificuldade resolvida”.

Aracy e Rosa se conhecem e iniciam um relacionamento que perduraria até a trágica e prematura morte do escritor em 1967.

Rosa sabe o que Aracy faz, com grande risco. “Como cônsul-adjunto, ele não era responsável pelos vistos, mas sabia o que minha mãe estava fazendo. E apoiava”, diz Eduardo. “Os vistos eram assinados pelo cônsul geral”, lembra ele. Se descobertos, os dois poderiam ter tido o mesmo destino de Olga Benário Prestes, entregue por Getúlio à Gestapo. Ele, no mínimo, perderia o cargo. A cúpula do governo Vargas estava convencida de que os judeus, que Hitler queria extinguir da Europa, e que procuravam refúgio em qualquer país que os acolhesse, poderia comprometer a “boa” formação do povo brasileiro. Deveriam, portanto, ser impedidos de entrar no Brasil.

E por que ela não acatou as ordens de Getúlio, abandonando os judeus à própria sorte? “Porque não era justo”, ouvi dela uma única vez, em seu estilo reservado, como se arriscar a vida por gente que ela nem conhecia pessoalmente fosse uma atitude óbvia. Pena que muitos se esqueceram disso quando Hitler parecia ter dominado a Europa, era admirado e copiado por Getúlio, e os judeus enviados aos milhões para campos de extermínio.

O gesto heróico de Aracy recebeu dezenas de homenagens, entre as mais importantes, uma placa em seu nome no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém (veja fotos). Até há pouco, era o único nome brasileiro. Recentemente, ganhou a companhia de Luiz Martins de Souza Dantas, o embaixador em Paris durante a guerra, que também arriscou a vida salvando judeus. Aracy ganhou uma placa também no Museu do Holocausto de Washington. E foi homenageada diversas vezes pela comunidade judaica brasileira, onde é conhecida como o “Anjo de Hamburgo”.

Maria Margareth Bertel Levy, ou dona Margarida, como prefere ser chamada, e seu marido, o cirurgião-dentista Hugo Levy, já falecido, são alguns entre os judeus que Aracy ajudou a salvar. “Ela me levou pessoalmente ao navio, usando seu passaporte diplomático”, lembra. Dona Margarida e seu marido, como muitos outros judeus que moravam na Alemanha, subestimaram o perigo representado pela ascensão de Hitler ao poder. “Hamburgo tinha tradição de uma cidade liberal e imaginávamos que estivéssemos a salvo”.

“Ela foi realmente um anjo que entrou na nossa vida”, diz alguém que acompanhou o asilo de Geraldo Vandré na casa de Aracy, em 1968. “Artistas na época foram presos e sofreram muito”, diz. “Graças a Aracy, Vandré conseguiu fugir para o Uruguai sem ser molestado”. Detalhe: Aracy não conhecia o cantor e compositor. Sabia apenas que ele tinha trabalhado no filme de 1965 de Roberto Santos A hora e a vez de Augusto Matraga, baseado no conto homônimo de Guimarães Rosa, e do qual Vandré foi co-produtor, autor da trilha sonora, e ator. E que estava sendo procurado pela ditadura.

Diário de Hamburgo

Primeiro de setembro de 1939. Os alemães invadem a Polônia. Começa a Segunda Guerra Mundial. Aracy continua dando vistos para judeus, arriscando o emprego e a vida. Guimarães Rosa a apóia, e de qualquer forma, como tinham uma relação pública, teria sido de qualquer forma considerado cúmplice. A partir de 1940, a aviação britânica começa a bombardear alvos estratégicos em diversas cidades da Alemanha, entre elas Hamburgo. “Ainda me lembro do barulho das sirenes”, recorda-se Eduardo, na época ainda criança.

Guimarães Rosa mantém então um diário de guerra, ainda inédito, onde anota o terror produzido pelos aviões da RAF. “Há muitos recortes de jornais, e pela forma como os recortes estão colados, e pelos comentários, é possível ver o que está acontecendo na Alemanha no período”, diz Wander Melo Miranda, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e diretor da editora da UFMG. O livro foi preparado para publicação por dois professores brasileiros e um alemão, mas ainda não tem data prevista para publicação. “É o único diário sobre a Segunda Guerra Mundial escrito por um grande nome da literatura latino-americana”, diz Miranda. É de se prever que o "Diário de Hamburgo” , como vem sendo chamado, teria enorme repercussão na Alemanha, onde Guimarães Rosa é particularmente reverenciado.

“Não sabemos ainda se o livro poderá ser lançado”, diz Miranda. “É um trabalho bem feito, do qual temos orgulho. É um livro que interessa a tipos diferentes de públicos: historiadores, críticos literários, alemães, judeus, os habitantes de Hamburgo, e enfim, aos admiradores do escritor no mundo todo”.

Mas não é só no diário engavetado que Guimarães Rosa deixou suas impressões antitotalitárias: sabe-se hoje que ele chegou a ser denunciado na Gestapo por suas posições políticas. É o que revelaram pesquisadoras brasileiras que encontraram nos arquivos da polícia política alemã queixas então encaminhadas pela chancelaria do Terceiro Reich ao Ministério das Relações Exteriores, dando conta que o então cônsul adjunto fizera declarações contrárias ao regime de Adolf Hitler.

Por ironia do destino, Aracy, que teria tanto para contar, hoje com 98 anos, pouco se recorda. “Até os anos 90 ela ainda estava ativa, e tinha muitos amigos dos tempos do Itamarati. Mas com o tempo, foram morrendo e Aracy foi se apagando”, lamenta uma amiga.

Mas Dona Margarida, salva por Aracy, imigrou para o Brasil, e continua sua amiga até hoje, ainda lembra: “Quando fomos a primeira vez ao seu encontro, o cônsul-geral foi muito gentil. Mas subitamente, de uma hora para outra, tornou-se anti-semita. Sabendo da nossa amizade, disse a Aracy que ela estava proibida de ter amigos judeus. Ela respondeu que ele não tinha o direito de se meter na sua vida”.

Escondendo Geraldo Vandré

1968, o ano que não acabou, como definiu Zuenir Ventura. Mal refeita da morte do marido, vem o AI-5. Aracy toma parte em reuniões contra a ditadura, onde fica sabendo que Geraldo Vandré está sendo procurado pelos militares. “Um dia recebi um telefonema de alguém que se identificou como sendo a sua governanta”, diz uma pessoa que acompanhou a história, e que prefere não se identificar por razões familiares. “Disse que se precisasse de algo, ela estaria pronta a ajudar. Foi como um anjo que caiu do céu na hora certa”.

Vandré ficou escondido no apartamento onde o escritor vivera, e onde morrera um ano antes. Com vista para o Forte de Copacabana, ironicamente, Vandré acompanhava do gabinete de trabalho onde fora escrito Grande Sertão: Veredas a movimentação do exército no encalço dos perseguidos políticos da época - ele mesmo inclusive. O mais curioso é que Vandré encarnara como ninguém o jagunço do sertão nordestino na canção popular.

A paixão entre Rosa e Aracy, afinal, não é difícil de entender. Suas personalidades combinavam. Primeiro, o interesse por línguas. Ele, um poliglota rematado, como uma vez se definiu, com o humor blasé reservado aos gênios: “Falo alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração”.

Ela, além de falar diversas línguas, era bonita, educada, interessada em arte, história e literatura, e acima de tudo, uma humanista corajosa. Enfim, alguém de quem se poderia dizer o mesmo que Riobaldo no começo do Grande Sertão: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”

Aracy parece ter colocado na cabeça a idéia de que o anti-semitismo em ascensão na Alemanha era uma idéia errada. E foi até o fim apesar dos riscos.

15 de agosto de 1942. Submarinos alemães torpedeiam o navio brasileiro Baependi. No dia 31 de agosto o Brasil declara guerra à Alemanha. Diplomatas brasileiros, entre eles Cícero Dias, Cyro de Freitas Vale, além de Guimarães Rosa e Aracy, são mantidos em custódia por mais de quatro meses em Baden-Baden, e finalmente trocados por diplomatas alemães. Guimarães Rosa e Aracy embarcam para o Brasil, via Stutgart, Madri e Lisboa. Fim do Diário de Hamburgo.

Um chamado João

O casal se instala no Rio. Como não podem se unir legalmente – ainda não existe o divórcio no Brasil - se casam por procuração, no México, como era de praxe na época. Ele ainda tem cargos diplomáticos de grande importância – é nomeado, por exemplo, para a Conferência de Paz em Paris. Dedica-se cada vez mais à literatura. Em 1946 publica Sagarana. Em 1956 aparece Corpo de Baile e logo depois Grande Sertão: Veredas. “Eu era menino ainda”, recorda-se Eduardo. “Mas lembro bem dele lendo trechos em voz alta para minha mãe”. Aracy abdica da carreira diplomática: prefere ficar ao lado do escritor, cuja projeção começa ganhar dimensões internacionais. Durante o governo JK ele ganha status de embaixador (e não em 1963, como diz a Enciclopédia Britânica).

1965. Rosa é traduzido e publicado na França, Itália, Estados Unidos, Canadá e Alemanha. Depois Polônia, Holanda, Tchecoslováquia. No apartamento com vista para o mar, em Copacabana, onde ele continua retocando interminável e obsessivamente seus livros, e colecionando as edições internacionais que se avolumam, o casal recebe a elite intelectual da época: o crítico brasileiro (nascido na Hungria) Paulo Rónai; o tradutor para o alemão Curt Meyer-Clason; o crítico Willi Bolle; seu editor americano e também amigo pessoal, Alfred Knopf; o tradutor para o espanhol Angel Crespo; o crítico francês Renard Perez; o tradutor para o italiano Edoardo Bizzarri, com quem manteve riquíssima correspondência, publicada no Brasil e na Itália... Enfim, a lista é infindável.

Domingo, 19 de novembro de 1967. Três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras, o que vinha adiando há anos devido ao receio de não resistir à emoção, Guimarães Rosa brincava com a neta favorita, Vera Tess, no seu escritório. Como fazia todo domingo, Vera saiu com a avó Aracy para ir à missa ao final da tarde, na igrejinha do Forte de Copacabana. “Na volta para casa, eu levava pipoca para ele”, lembra Vera, hoje uma psiquiatra em São Paulo, mãe de dois filhos, o primogênito chamado João, em homenagem ao escritor. “Naquele domingo, ao entrar no escritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha. Soube depois: estava tendo o enfarte”, recorda na introdução do Ooó do Vovô!, uma coletânea de cartões postais enviados por Rosa às netas Vera e Beatriz Helena, publicada em 2003 pelas editoras da USP e da PUC de Minas (veja abaixo).

1973. Tom Jobim grava o seu álbum Matita Perê, talvez sua obra mais importante, e certamente, a melhor tradução musical da obra de Guimarães Rosa. Nele, em uma faixa dedicada ao escritor, resume a perplexidade do mundo com o seu desaparecimento prematuro, seis anos antes:



E por maus caminhos de toda sorte

Buscando a vida, encontrando a morte

Pela meia rosa do quadrante Norte,

João, João

...

Recebendo aviso entortou caminho

De Nor-Nordeste para Norte-Norte

Na meia vida de adiadas mortes

Um estranho chamado João

...

Por sete caminhos de setenta sortes

Setecentas vidas e sete mil mortes

Esse um, João, João

E deu dia claro

E deu noite escura

E deu meia-noite no coração

...


Hoje, Aracy, aos 98 anos, vive em São Paulo, com o filho Eduardo e a nora Beatriz Tess.

Vasculhando a biblioteca da Universidade de São Paulo, movido pela curiosidade de saber como a palavra “nonada”, a primeira de Grande Sertão: Veredas, foi traduzida para línguas como alemão, inglês, espanhol e italiano, me dou conta que devo a minha vida e a de meus pais a pessoas como Aracy.

Como judeu polonês, meu pai era considerado cidadão de segunda classe em seu próprio país, com direitos limitados (não podia freqüentar bibliotecas e universidade). E sobreviveu aos nazistas apenas por que nem todos se renderam à barbárie totalitária.

No caso dele, e também de minha mãe, não foi Aracy, mas outras pessoas que os salvaram, arriscando suas vidas. Já grande parte da minha família não teve a mesma sorte. Meu avô paterno morava no Gueto de Varsóvia de onde a partir de julho de 1942 centenas de milhares de judeus começaram a ser deportados para campos de concentração. Em vagões de gado.

Segundo o judaísmo, quem salva uma vida, salva uma parte da humanidade, porque salva toda sua infinita descendência. Para estes, por maiores que sejam, as homenagens nunca serão suficientes.


René Decol é jornalista e doutor em ciências sociais pela Unicamp. Nascido em São Paulo, filho de sobreviventes do holocausto, está escrevendo um livro sobre imigração judaica para o Brasil

Meu avô Joãozinho

Introdução ao Ooó do Vovô! : Correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess

Vera Tess

Aracy, minha avó, e João Guimarães Rosa, Joãozinho para ela, conheceram-se em 1938, no Consulado Geral do Brasil em Hamburgo, onde ela trabalhava. Ele, após ingresso na carreira diplomática, assumiu como cônsul adjunto, seu primeiro posto no exterior. Ambos desquitados. Foi quando começou uma história de amor que durou quase trinta anos.

Em 1942 houve o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha e posterior declaração de guerra. Na troca de diplomatas brasileiros e alemães, os brasileiros, após permanecerem sob internato na cidade de Baden-Baden, vieram para o Rio de Janeiro. Meu avô seguiu a carreira, enquanto minha avó deixou o Itamarati.

Moraram inicialmente na praia do Russel, no Flamengo e depois na rua Figueiredo de Magalhães, em Copacabana. Posteriormente fixaram residência na rua Francisco Otaviano, 33, no Posto 6, no Arpoador, onde ele veio a falecer. Foi ali que o conheci e convivi com ele, infelizmente por tão pouco tempo.

Morávamos em São Paulo, meus pais, Edu e Bia, e meus quatro irmãos: Beatriz Helena, minha irmã, mais velha um ano, a quem eu chamava de "dois-neném" (eu era a número um, claro!); e meus irmãos mais velhos, Eduardo (Bite), Luiz Renato (Uiz Renato) e Plínio (Pínio).

Caçula, eu não ia ainda para a escola, o que me permitia passar mais tempo no Rio. Os cartões, escritos entre 1966 e 1967, quando eu tinha entre 3 e 4 anos de idade, eram como vovô Joãozinho me convidava para mais uma temporada no Rio.

Demorei a falar (por pura preguiça, diziam), limitava-me a apontar para os objetos que eu queria pegar, chamando-os de "ooó". Daí meu avô carinhosamente chamar-me de "ooó do vovô". Nos cartões e nas anotações ele recriava um universo completamente familiar para nós dois, reproduzindo sons, imagens, objetos e personagens, numa linguagem sedutora.

Todo esse material - cartões, anotações, cartas e desenhos feitos por mim e por minha irmã, junto com recortes de jornal sobre o autor João Guimarães Rosa com anotações suas para mim - foi guardado pela minha avó por anos. Em 1998, quando levamos os manuscritos do Grande Sertão: Veredas para Guita e José Mindlin nos orientar sobre como conservá-los, levei também estes cartões. Começou aí toda a história de publicá-los.

Vovô Joãozinho não era meu avô biológico, mas meu avô de coração e de fato, o único que conheci. Era o vovô que contava estórias, muitas estórias, que fazia dormir cantando músicas de ninar, que levava ao Zoológico - adorávamos o Zoológico do Rio - que escrevia cartas e desenhava cartões...

Quando ele morreu, num domingo, 19 de novembro de 1967, eu tinha quatro anos e três meses. Três dias depois da posse na Academia Brasileira de Letras. Estávamos no Rio para a cerimônia, meus pais e eu. Meus pais voltaram para São Paulo na manhã do dia 19, e eu fiquei.

Todos os domingos, quando eu estava no Rio, minha avó e eu íamos à missa ao final da tarde, na igrejinha do Forte de Copacabana, que ficava justo ao lado do edifício. Na volta para casa, eu levava pipoca para ele. Naquele domingo, ao entrar no salão dos fundos, onde ficava,seu escritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha e chamando-me ..." ooó". Soube depois: estava tendo o enfarte.

Em minha última lembrança, ele está deitado num dos quartos, vestido com o fardão da Academia Brasileira de Letras, muita confusão no apartamento.

Cada vez que releio esses cartões, sinto um carinho imenso por esse "vovô queído" e muita pena por não ter tido mais tempo com o nosso vovô Joãozinho.

04 dezembro 2006

Um amigo chamado João

"Debaixo desta casca de civilizado, o que há é um jagunço. É o que sou. Comigo injustiça se corrige é a bala"

João Guimarães Rosa


Para o lançamento da edição de 1992 de Grande Sertão: Veredas, o jornalista Franklin de Oliveira escreveu uma introdução, que acabou desaparecendo das edições mais recentes. Nela, o jornalista e crítico literário, que se tornara amigo pessoal de Rosa, traça uma biografia suscinta do escritor. O texto foi editado por questões de concisão e clareza

Lembranças: Rosa, relógio de sol

Franklin de Oliveira

Sigo recordando o meu primeiro encontro com João Guimarães Rosa. Aconteceu em 1945 . . . Erymantho Coelho da Silva era o meu amigo mais íntimo. Mineiro, de Barbacena, fora o primeiro professor de inglês de Guimarães Rosa, quando este se preparava para ingressar por concurso no Itamarati. Erymantho ia sempre lá na casa de Rio Branco, bater papo com o Rosa.

Tinha saído Sagarana, provocando uma revolução na imprensa. Um dia Erymantho me disse: "Sabes? Estive ontem com o Rosa e ele falou em ti. Eu disse a ele que além de trabalharmos na mesma empresa, éramos grandes amigos. Ele me pediu para te levar ao seu gabinete." Recusei. Recusei não só uma, mas várias vezes: "Sou bicho de concha, gosto de ficar quieto no meu buraco." Mas, uma tarde, o Erymantho, ao voltar do Itamarati, me disse: "O Rosa me deu um ultimato. Quer que te leve a ele amanhã às 13 horas. (Rosa era o chefe de gabinete do chanceler João Neves da Fontoura.) Disse-me que se eu não te levasse, ele romperia comigo." E perguntou: "Agora, vai ou não vai? Vai ou vai querer que eu perca um amigo como o Rosa?" Não tive outro remédio, senão responder: "Se é assim, vou."

Chegamos ao Itamarati, o Erymantho apresentou-me ao Rosa, que mandou fechar as portas do gabinete e desligar os telefones. Ficamos a tarde inteira conversando. À hora de sairmos, ele puxou uma das gavetas de sua mesa de trabalho, retirou de lá um exemplar da primeira edição de Sagarana, escreveu a dedicatória: "A F. de O., que me faz acreditar ainda mais nas coisas em que mais acredito, com a crescente e inevitável amizade do G. R." Deu-me um abraço e disse: "Não te largo mais."

Antônio Calado, que conhece a história, uma vez me disse: "E não te largou mais."

* * *

Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, nos arredores da gruta descoberta pelo naturalista dinamarquês Lund, motivo porque Rosa por vezes chamava a sua terra de Lundlândia.

Em 1918, o seu padrinho e avô Luís Guimarães o leva para Belo Horizonte, matriculando-o no Colégio Arnaldo. Concluído o ginásio, matricula-se Rosa, em 1925, na Faculdade de Medicina de BH. Formado, é o orador da turma. Em 1930 casa-se em Belo Horizonte. No ano seguinte inicia a sua carreira de médico em Itaúna, no oeste mineiro. Em 1932, quando São Paulo se insurge contra a ditadura de Getúlio Vargas, Rosa ingressa como voluntário na Força Pública Mineira, na qual mais tarde se torna oficial médico, via concurso.

Em 1934 faz concurso para o Itamarati, tendo conquistado o segundo lugar. Via na diplomacia um meio de conhecer o mundo, coisa que, como menino pobre, jamais poderia fazer. Seu primeiro posto na carreira foi o de cônsul na Alemanha (Hamburgo, 1938), onde conheceu sua segunda mulher, que seria a companheira de toda a vida - Aracy Moebius de Carvalho, que ele tratava carinhosamente de Ara. Com heróicas feijoadas aos domingos, ambos matavam as saudades do Brasil.

Em 1932 a José Olympio promove um concurso de contos. Rosa se inscreve com Sagarana, título posterior do volume antes chamado de Sezão. Graciliano Ramos votou num outro - um livro de Luís Jardim. Do júri, só Marques Rebelo votou em Sagarana. Graciliano depois se arrependeu e desandou à procura do autor que, a essa altura, andava longe.

Estoura a guerra em 39. Cônsul adjunto em Hamburgo, Rosa dá proteção diplomática a todos os perseguidos políticos do nazismo. "Hitler era o demônio", cansou de me dizer. Com Ciro de Freitas Vale, embaixador do Brasil no Terceiro Reich, e Cícero Dias, Rosa foi confinado em Baden-Baden.

Volta ao Brasil. Demora pouco no seu país. É mandado para a Bolívia, como secretário da nossa embaixada. Em 1946 é nomeado chefe de gabinete de João Neves da Fontoura, ministro do Exterior. E logo a seguir é nomeado delegado brasileiro junto à Conferência da Paz.

Volta em 1942. Nesse ano, Rosa empreende a viagem ao pantanal matogrossense, cujo perfil retrata na rapsódia "Com o vaqueiro Mariano". Ele é o descobridor do paraíso ecológico do Brasil Central. Publicado no Correio da Manhã, "Com o Vaqueiro Mariano" é reeditado em plaquete, com ilustrações de Darel Valença Lins, em Niterói, em 1952.

De 1948 a 1952, ei-lo em Paris como primeiro secretário e ministro conselheiro da nossa embaixada na França. Em 52 retoma ao Brasil e, de novo, é nomeado chefe de gabinete do chanceler João Neves da Fontoura.

1956. Este é o seu grande ano. Publica, em maio, os dois volumes do livro de novelas Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, pela José Olympio.

É eleito para a Academia Brasileira de Letras, na vaga de João Neves da Fontoura. Espírito supersticioso, adia a data da posse. Diante dos incessantes adiamentos, Austregésilo de Ataíde chega a lhe propor considerá-lo empossado. Rosa recusa até que chega o dia 16 de novembro de 1967, marcado definitivamente para a investidura acadêmica. A posse equivale a uma nova consagração.

Eu não tinha telefone em casa, e não ouvia rádio nem televisão. Na manhã de 20 de novembro, tínhamos encontro marcado para o almoço. Ao sair de casa, para tomar o ônibus, para ir ao seu encontro, na esquina da avenida Bartolomeu Mitre com a praça Antero de Quental, numa banca de jornal, vejo O Globo dependurado, com o retrato do Rosa com a farda acadêmica no alto da primeira página. Aproximei-me, pensando que era ainda matéria sobre a posse. Não. Era a notícia de sua morte súbita. O choque foi brutal. A sua brutalidade perdura há um quarto de século, com toda a sua crueldade.

Fui direto para a Academia. Lá estava o meu amigo. Dizia ele: "Não se morre: fica-se encantado." Conversando com Aracy, ele, em varias oportunidades, pedira para ser sepultado com os óculos. Já desenganado, num hospital de Zurique, Thomas Mann vivia no seu semicoma mirando o anel com uma turmalina verde que ganhara da filha Erik, ao fazer oitenta anos. Miguilim quis levar para o lado escuro da vida os seus óculos de míope.


***


E por que Rosa deixou a medicina?

Porque não admitia que um doente morresse em suas mãos.

A medicina dera-lhe várias paixões na sua vida. Entre estas,estavam as serpentes, que ele considerava o símbolo da perversidade. Resolveu estuda-las. Um dia, estava no campo, perseguindo uma, quando um enxadeiro lhe deu o sábio conselho:

"Moço, com mulher e com cobra não se brinca."

Rosa aceitou a segunda parte do conselho. E continuou a achar a mulher uma invenção maravilhosa.

Rosa era extremamente cioso de sua vida íntima. "Quem quiser me conhecer, procure-me nos meus livros", dizia aos leitores que o procuravam no Itamarati. Polido, recebia as pessoas com extrema delicadeza, mas nada de intimidade. Um contínuo, negro, quando me encontrava no Itamarati, dizia-me, referindo-se ao Rosa: "Aquilo sim é que é 'deplomata' leal."

Minucioso, anotava tudo, pois aprendera com Goethe que na natureza, nada se repete, não há coisa que seja igual a outra. Se lhe faltava papel, fazia anotações nos punhos da camisa.

Dos sentimentos humanos, aquele que mais o perturbava era a inveja. E me lembrava sempre o episódio bíblico de Caim e Abel, acrescentando que nós ambos éramos muito expostos a tal sentimento.

Vivia lendo. Mas não guardava livros: praticamente não tinha biblioteca. Tinha uma pequena goethiana, selecionadíssima. Livro de poesia, nenhum. Para o Rosa, a música e a prosa eram as duas formas de arte suprema. Assinalava nos livros que lia as passagens que lhe interessavam, mas com lápis de variadas cores. Não se sabia se as marcas eram de concordância, de discordância ou dicas para a formulação de novos pensamentos. Não dava a chave da mina a ninguém. Nos seus textos, fazia questão da tipologia. E quando achava lindo o nome de um lugar, como Buriti de Inácia Vaz, não hesitava em deslocá-lo do Maranhão para uma região mineira que fosse cenário de suas narrativas.

Me pegava em casa, toda manhã, no carro do Itamarati e descia para a cidade, pela Gávea. Na altura do Jardim Botânico, mandava o carro parar, e ficava olhando as palmeiras com olhos de mirar.

Não suportava injustiças. E me dizia: "Debaixo desta casca de civilizado, o que há é um jagunço. É o que sou. Comigo injustiça se corrige é a bala."

Em 1964, quando começou a caça às bruxas, quis que fosse me asilar na casa dele. Recusei: poderia comprometê-lo e eu não tinha esse direito. Só quando viu que não me demoveria da minha decisão, organizou uma lista de embaixadas nas quais eu pudesse buscar o direito de asilo.

Um dia a revista Manchete publicou uma foto de cassados embarcando de avião para o exílio. E me incluíram entre os expatriados. Estava para sair a edição americana de Sagarana. Rosa enviou a Alfred Konpf, o editor estadunidense, uma cópia de meu artigo sobre as epígrafes de Sagarana, com uma carta. Dizia que fazia questão da inclusão do meu texto na edição norte-americana, porque eu era perseguido político e ele queria dar um testemunho universal de sua solidariedade a mim.

Devemos ao embaixador Roberto Assunção a mais bela e exata definição de João Guimarães Rosa: relógio de sol - só marca as horas luminosas.

Em 1955, por motivos políticos, eu estava desempregado. Um dia, a campainha do apartamento da rua Rainha Guilhermina, no Leblon, onde eu residia, toca. Era o Rosa: "Desenferruja a pena. O Antônio Calado está te esperando hoje às 16 horas no Correio da Manhã."

O Rosa trançara com o Paulo Bittencourt e o Pedro Lessa Speyer, mineiro de Montes Claros, sobrinho do grande Pedro Lessa, o meu ingresso no Correio da Manhã, em substituição ao Álvaro Lins, que estava deixando o jornalismo: iria ser o chefe da Casa Civil do presidente Juscelino Kubitschek.

Rosa praticava aquilo que os alemães chamam de "amizade combatente": atuava a favor do amigo, sem esperar que este lhe pedisse ajuda. E fazia tudo mineiramente, em silêncio.

João Guimarães Rosa: quantas lembranças ficaram fazendo, de mim para mim, a vida mais bela!

Junho de 1992

18 novembro 2006

Blogs, Borat, et Balzac

Celulares descartados estão virando problema ambiental. E os blogs estão ganhando força na França, um país onde escritores como Balzac buscavam inspiração... comendo café... em pó!

Trocar de celular por um modelo mais novo, cheio de recursos, e blog, as grandes manias do momento. Ainda mais agora, que começam a entrar em cena os telefones portáteis de quarta geração.

A troca de celular é cada vez mais rápida, e já está se tornando um problema de meio-ambiente. Os americanos compram um modelo novo a cada 18 meses, os europeus a cada 15, e os japoneses a cada 9. Só os ingleses compram 15 milhões de aparelhos a cada ano. Segundo o Programa de Meio Ambiente da ONU, 50 milhões de celulares são descartados no mundo todo anualmente.

E sem contar que vem por aí uma nova geração: a quarta. Trata-se do celular com acesso a banda larga por preço fixo. Até agora, acessar a internet do aparelhinho era cobrado como luxo extra, e caro. Paga-se uma nota por cada byte.

Já a nova geração permite o acesso à rede por uma taxa fixa, mensal. Assim, fica possível usar serviços como o Skype ou Messenger. Já pensou fazer uma ligação internacional de celular por Skype, sem pagar a taxa exorbitante que as operadoras cobram? E ler e atualizar o seu blog de qualquer lugar, a qualquer momento? Sem falar na hilária aparição do Borat no programa David Letterman que alguém colocou no YouTube.

Liberté, egalité, fraternité ... et bloguer

Segundo a Technorati, o número de blogs no mundo todo passou de 1,6 a 26,6 milhões entre janeiro de 2004 e janeiro de 2006: um crescimento de nada menos do que 16 vezes em dois anos.

O curioso é que os blogs estão virando fenômeno justamente em um país não muito afeito à novidades: a França. Cerca de um terço de todos os blogs europeus são escritos no tradicional idioma de Flaubert, Balzac e Baudelaire.

Movido por café... em pó

Por falar em Balzac, ele era conhecido pela sua paixão pelo café. Conta-se que escrevia até quinze horas por dia, tomando dezenas de xícaras. Sem, é claro, deixar de frequentar a badalada vida social parisiense do início do século 19.

O que descobri agora lendo Mark Pendergrast, autor de uma história desta fascinante bebida, é que Balzac ia de pó de café puro, com pouca água, em jejum... Então sentava e escrevia.

O resultado, pelo menos literário, era espetacular: “Tudo se torna agitado. As idéias rapidamente entram em marcha como batalhões de um grande exército... A cavalaria das metáforas desfila com um magnífico galope... Formas e personagens se levantam...”

Desconhece-se o efeito do amargo pó preto sobre o estômago vazio do autor de As ilusões perdidas.

Confesso que também gosto de bebericar um café enquanto escrevo. Mas não à moda do autor francês, que destilou sua ironia - quase digo 'cafeína' - na monumental A comédia humana - um conjunto de 95 obras acabadas e 48 inacabadas... O meu, por favor, é com leite, e um pouco de espuma.

Uma dúvida assalta minha alma, para usar uma expressão da época: segundo meu amigo Dagomir Marquezi, blog vicia. Já pensou se Balzac tivesse um blog? E um celular de quarta geração? E uma daquelas latas de antigas de Nescau , cheia de... Nescafé? Do bom?

11 novembro 2006

Falha na mensagem

Alguém já notou que as grandes tragédias acontecem por erros de comunicação? Eu estava em Miami, e uma ex-namorada no hotel mais chique da cidade. Foi aí que ocorreu um problema tecnológico. Grave...

No dia que alguém escrever a história das comunicações, dos tempos romanos à era da internet, terá de lembrar dos grandes erros que resultaram em tragédias . Um deles foi o Titanic. Descobriu-se recentemente que o serviço de meteorologia advertiu o célebre transatlântico, pelo telex, de que havia icebergs na sua rota. Acontece que o telex jamais chegou às mãos do capitão: ficou perdido em meio a uma montanha de telegramas enviados ao pessoal da primeira classe, com felicitações, votos de boa viagem, e outras bobagens. Em linguagem de hoje, uma mensagem de alta prioridade se perdeu no meio do spam.

E o desastre com a Challenger? O que aconteceu com a nave espacial americana, que explodiu em pleno vôo, menos de dois minutos após o lançamento, foi basicamente um erro de comunicação. Era um dia frio, e a Nasa sabia que abaixo de uma certa temperatura o lançamento era arriscado porque os anéis de borracha que vedam os foguetes ficam rígidos, e podem arrebentar como um elástico velho. Só que naquela manhã a temperatura estava bem no limite. A Nasa consultou o fabricante dos foguetes, que respondeu, através de fax, que não haveria maiores problemas. A prova: um gráfico, feito à mão, que mais tarde se revelou mal feito, e que não revelava a dimensão do problema. Resultado: sete mortos e bilhões de dólares de prejuízo.

Também enfrentei um problema de comunicação em minha última viagem aos Estados Unidos. Tenho uma ex-namorada americana (Pris, para omitir o nome verdadeiro, e fazer uma homenagem à célebre andróide de Blade Runner representada por Darryl Hannah), com quem me comunico muito por email. Temos um entendimento bom, e vivemos fazendo brincadeiras um com o outro. Coisas de ex-.

Coincidiu que ela ia estar em Miami bem quando eu tinha de voltar ao Brasil. Como meu vôo saia de Miami, e ela estaria hospedada no hotel mais novo, caro e metido da cidade, participando de um desses eventos de empresa, perguntei se poderia bancar o maridão. (Ela está solteira). Ganharia duas noites no badalado cinco estrelas de South Beach. “Claro”, respondeu ela por email. Peguei um avião no aeroporto de La Guardia, em Nova York, e como sempre, enquanto aguardava o vôo, entrei na internet e chequei os emails. “Estou chegando”, mandei um pra ela. Achei o endereço do hotel no Google e anotei na Palm.

Até pouco tempo, as redes sem fio nos aeroportos eram de graça. Agora, já estão cobrando até pela energia elétrica. Como eu não queria pagar cinco dólares só pra enfiar um plug na tomada, deixei o notebook na bateria. É um modelo barato, de 500 dólares, e seu único problema é que a bateria dura pouco. Fora isso, tem wi-fi e funciona bem. Fiquei atualizando o blog até acabar a bateria. E embarquei rumo a Miami.

Cheguei no hotel por volta da meia-noite e me dirigi ao concierge: “Minha mulher está hospedada para um evento da empresa..." Como era mesmo o nome da agência de publicidade onde ela trabalha em Dallas? Enfim, enrolei, tal e coisa, e coisa e tal. Afinal, será que poderiam checar o número do quarto dela e anunciar minha chegada? Como eu já estava em fim de viagem, tinha sobrado pouca roupa, na verdade apenas uma camiseta branca de manga comprida, dessas que parecem mais um pijama. Toda amassada. Mas parece que em Miami ninguém liga pra essas coisas. Olhei em volta. Sim, tinha gente mais mal vestida que eu.

O concierge, sempre muito educado, achou o quarto da Pris e ligou. Ninguém atendeu. Claro, ninguém fica no quarto, tendo toda a vida noturna de South Beach à disposição, inclusive o bar onde meu amigo Fernando toca música brasileira. Ela adora música brasileira. Deve ter levado o pessoal do trabalho pra ver o show do Fernandão, pensei, todo otimista.

Mas já era tarde, e eu ali com as malas. Tentei o celular. Várias vezes. Caixa postal. Vários torpedos. Nada. Fiquei andando de um lado para o outro, um tempão, tentando os vários números que tinha no meu celular. Como estava com um GSM novo, com chip local, tinha diversos números , depois de diversas trocas de cartão SIM, backups e sincronizações. Tentei todos, mas sempre caía em alguma caixa postal.

De repente vi alguém chegando. Parecia a Pris. Eu estava sem óculos, a gente não se via há anos, e nunca tinho visto ela vestida tipo “evento de negócios”. Achei que só podia ser ela. "Aí vem minha esposa”, disse feliz ao concierge. Não, não era. A mulher passou batido. O concierge me olhou como quem pensa: “Então o cara não conhece a própria esposa... Qual será o golpe?”

“Sabe, bem, na verdade é minha ex-mulher, e a gente não se vê faz anos...", enrolei com a maior cara de pau. "E mulher tem esse negócio: bem vestidas todas se parecem, não acha?”, brinquei. Não, ela parecia não ter achado a menor graça.

Foi então que lembrei que a Pris não usa mais celular. Usa Blackberry. Muita gente nos Estados Unidos já aposentou o celular em troca da nova mania. Àquela hora (uma da madrugada, eu morrendo de fome e sono), só conseguiria me comunicar com ela mandando um email para o Blackberry. “Será que tem tomada aqui no lobby pra recarregar meu notebook? Minha bateria morreu”, perguntei. Não, não havia tomada no lobby do hotel mais chique e caro de Miami. Tinha piano de cauda, esculturas de mármore, janelas de vidro que davam para a piscina ou para o mar, arranjos de plantas exóticas, tudo menos uma simples tomada... E pior, o concierge cada vez mais desconfiado. “Ah, a bateria morreu?”, podia ler seus pensamentos. “Você vai ver o que vai acontecer a você quando eu chamar a segurança...”

Mas o bacana da democracia americana é que todo mundo é tratado por igual, com o mesmo respeito, principalmente se você tem um cartão de crédito. O concierge disse que eu poderia acessar a internet no "business center", que é como eles chamam a sala onde ficam os computadores. Subi em busca da tomada perdida.

Nada de tomada no business center. Um monte de computador, nenhuma tomada disponível. Não ia arriscar mexer nos fios e dar um curto-circuito no badalado cinco estrelas de South Beach. Entrei na internet pelo sistema do hotel, tendo para isso, obviamente, que usar o cartão de crédito. Lá estava a resposta da Pris à mensagem que eu mandara do La Guardia: “Você tá falando sério? Pensei que estivesse brincando”. Não, ela não contava comigo. E não era o lugar e o momento de "discutir a relação".

Foi então que caiu a ficha: ocorrera uma grave falha de comunicação, um erro tecnológico, um desastre comparável ao Titanic ou à Challenger. Precisava de um plano B.

Desci, e para minha sorte, havia acabado de acontecer a troca de turno: já era outro concierge. Perguntei o preço do quarto mais simples. Uma noite era o preço de um monitor de cristal líquido, 19 polegadas, com entrada DVI e tudo.

Fiz uma longa pausa. “Sabe, tem um problema”, disse com cara de contrariado. “Vocês não tem tomada no lobby, e fui lá em cima inspecionar, nem no business center. Uso programas muito complexos, que usam muita memória e energia. Preciso recarregar a bateria frequentemente”. O concierge parecia desolado. “Mas temos acesso banda larga nos quartos", disse ele, quase pedindo desculpas. "Mas eu não quero ficar trabalhando no quarto. Só trabalho ouvindo música. Quero trabalhar no lobby, ao lado do piano", menti. Afinal, até então, o pianista, pra lá de careta, só tinha tocado versões chorosas de La vie en rose, Besame mucho, e Tema de Lara.

"Como vai ser quando acabar minha bateria? Vou ter de subir ao quarto? Costumo trabalhar horas a fio. Um hotel desta categoria deveria pensar nestes detalhes", disse como quem não tivesse aprovado as instalações. O concierge garantiu que iria encaminhar a reclamação à gerência assim que amanhecesse.

Com cara de decepcionado com mais esta mancada dos nossos irmãos do norte, chamei ele meio de lado, e bem à brasileira, perguntei: “Vem cá, onde é que fica o Ibis mais próximo?”

No dia seguinte almocei com a Pris. E comprei o monitor LCD de 19 polegadas. É ótimo. Tem bem mais definição que o meu antigo Sony.

06 outubro 2006

As armas secretas da música

Todo mundo tem um disco especial, um LP de vinil (também conhecido como bolacha), que trata como se fosse a coisa mais preciosa do mundo

George Bush pode não ter encontrado as tais armas de destruição em massa no Iraque. Mas o jornal britânico The Guardian pediu a 49 músicos, produtores e escritores, que revelassem suas armas secretas, suas preciosidades musicais guardadas à sete chaves. O resultado, uma compilação publicada na edição de 6 de outubro de 2006, ficou tão boa, que aqui reproduzo o link. É uma coleção de 49 raridades que raramente chegaram à parada das dez mais da Billboard. Mas gente como Chrissie Hynde (ex-Pretenders), Nelly Furtado, e Roger McGuinn, ouviram essas coisas até furar o vinil. Como todo mundo tem um álbum assim, o Guardian deixou o número 50 por conta dos leitores. Quem enviar a melhor dica, ganha 500 libras em CDs (o equivalente a 1.000 dólares, ou 2.400 reais). Pode parecer muito no Brasil, mas é bom lembrar que na Inglaterra um CD está por volta de 20 libras.

Richard Hawley, por exemplo, revelou que sua bolacha preferida é a Missa em fá menor, disco de 1968, da banda americana "Electric Prunes" ("Ameixas elétricas"), que ficou conhecida pela faixa "Kyrie Eleison" da trilha sonora do filme Easy Rider (Sem destino), uma versão bem psicodélica da milenar (ou seria bilenar?) missa católica.

Confesso que é uma das minhas bolachas favoritas também. Tenho o vinil da trilha desde tempos imemoriais. Os Electric Prunes começam cantando a missa como um coro beneditino, muito afinado, cantando à capela. Mas quando você pensa que pegou o disco errado, que em vez do Easy Rider você pegou foi a missa de domingo do Padre Marcelo, eis que surge um trio de guitarra, baixo e bateria quebrando tudo. Uma guitarra lisérgica lembra Jimi Hendrix. Soa totalmente surrealista ainda hoje. Imagine em 1969, quando o filme foi lançado.

A trilha toda do Easy Rider é muito boa: inclui, entre outros, "If Six Was Nine", faixa do álbum Axis, Bold as Love, do Jimi Hendrix, "Born to be Wild", e "The Pusher" do Steppenwolf, o próprio Roger McGuinn (ex-Byrds), e mais uma porção de gente boa que sumiu desde que o filme foi lançado, ainda no milênio passado. Ouço sempre. Ou ouvia, até quebrar o toca-disco. Mas recentemente encontrei o CD no quarto do filho adolescente de uma ex-namorada. E claro, copiei para o meu iPod.

Já a cantora canadense de ascendência portuguesa Nelly Furtado mencionou o disco do Tom Zé, de 1998, Com defeito de fabricação, como melhor exemplo de world music.

O editor da seção Rock&pop do Guardian é bom nestas coisas. Na edição de 16 de julho ele já tinha publicado uma matéria especial, intitulada 50 álbuns que mudaram a música, uma compilação de discos que fizeram a histório do rock e do pop.

Juntas, as duas matérias valem por uma verdadeira enciclopédia, com uma preciosa seleção de clássicos e raridades do universo pop. O cara é o próprio Diderot do rock & roll.

Confesso que estou com vontade de mandar a minha sugestão, o meu álbum secreto preferido, e ver se faturo os CDs. É o disco da Zizi Possi onde ela regravou Nunca, o grande clássico de Lupicínio Rodrigues, o grande mestre da dor de cotovelo, e que se não me falha a memória, é mais ou menos assim:

Nunca, nem que o mundo caia sobre mim
nem se Deus mandar, nem mesmo assim
as pases contigo, farei

Nunca, quando a gente perde uma ilusão
Tem de sepultar o coração
Como eu sepultei

Saudade, diga a esta moça por favor
Como foi sincero o meu amor
Como eu a adorei
Tempos atrás

Saudade, não esqueça também de dizer
Que é ela que me faz adormecer
Pra que eu viva em paz


Ouço sempre, principalmente quando brigo com uma namorada. Claro, já está todo riscado. Do jeito que as coisas andam, acho melhor comprar logo o CD.


As armas secretas do rock

50 álbuns que mudaram a música

11 setembro 2006

Chansong

Uma canção à maneira de Henri Salvador

Ici à São Paulo
C'est un jour comme les autres
Sur le toit
Au soleil couchant

C'est un jour de vague à l'âme
]'ai le nez à la fenêtre
Je regard les bâtimentes

L’autre jour, j’ai dit que tu es très charmant
Mais c’était un mélange
Avant la leçon de français

Après la class de ‘Masculin et féminin’
J’ai compris
Que vraiment je vois dire que tu es charmante, avec un ‘e’
Parce que, plus que charmante
Tu es douce et très féminine

C’est un jour comme les autres
Un de ces jours qui n' ont ni rime ni raison
Une de tous ces jours qui n'osent pas dire leur nom

J’étude la ‘Grammaire Progressive de Français’
Et j’écoute Henri Salvador
Parce que j’ai le blues de toi

24 agosto 2006

De línguas, sanguessugas e pizza

Enfim, a solução do enigma: as tão esperadas traduções da frase da semana

O professor Marco Aurélio Metatarso preparou algumas alternativas para a tradução da frase da semana: “Relator diz que CPI das sanguessugas não vai terminar em pizza”.

Vale lembrar que a expressão 'terminar em pizza' nasceu de uma polêmica entre os jornalistas Marco Chiaretti, então na Folha de S. Paulo, e Mino Carta, então diretor da Isto É. Depois de uma calorosa troca de desaforos (por alguma razão hoje esquecida), os dois resolveram terminar civilizadamente a discussão em uma cantina, tomando um bom vinho, e comendo uma pizza, bem à moda paulistana. Nasceu assim, de forma inocente, a expressão que viria a tomar proporções inesperadas no campo da política.


Portanto, em inglês ficaria assim:
The relater says that the Congress Leeches Hearing will not end up in eating pizza Sunday night in an italian restaurant.


É claro que 'blood-suckers' também poderia ser usado, mas como se trata do Congresso Nacional achei que 'leeches' daria um tom mais oficoso à coisa.

Em francês:
Le rapporteur dit que la Comission Parlamentaire de l'Inquisition des sangssuces ne va pas se terminer en pizza avec du bon vin au le bistrô.


Uma leitora propõe as seguintes soluções, seguidas de um interessante comentário sociolingüístico:
Reporter says bloodsucker's parliamentary inquiry commission will not end up in a pizza party. He would rather prefer a Blood Mary cocktail party and an ambulance to bring each one safely back home.

Le rapporteur de la commission parlamentaire de investigacion sur les boiveurs de sang ne finirà pas dans une fête a pizza. Il aimerà mieux une fête au Marie Sanguant et une ambulance pour bien conduire chaqu'un chez soi.
Fica demonstrada assim a origem euro-asiática desses costumes, que nós, tupiniquins, aimorés e tupinambás, apenas copiamos.

Cunhã bebe sangue de gente, mas não suga ninguém.

Como nem todos conhecem o significado exato da palavra Cunhã, tomei a liberdade de copiar a definição do meu Houaiss eletrônico:

Cunhã

substantivo feminino

Regionalismo: Amazônia.
1 mulher
2 mulher jovem; cunhantã
3 a mulher do caboclo

Fica assim cabalmente demonstrado que mesmo os mais escabrosos escândalos da política brasileira são fácil e plenamente traduzíveis para outras línguas e culturas.

Embora 'terminar em pizza' seja, portanto, uma expressão brasileira (tendo nascido deste hábito tão paulistano, a tradicional pizza numa noite de domingo), outras línguas têm expressões similares. Em alemão, por exemplo, se diz 'ir pro gato', numa alusão aos restos da comida que frequentemente vão parar no prato dos bichanos.

Certamente deve haver similar em inglês e francês.

Algum tem alguma sugestão?

18 agosto 2006

Lingua franca

A partir desta semana, passamos a contar com a participação do professor Marco Aurélio Metatarso, especialista em linguística. Em sua coluna de estréia, ele propõe um exercício de tradução

Lendo os jornais de hoje me ocorreu um excelente exercício para ampliar nosso vocabulário. A idéia é traduzir - ou pelo menos tentar - o noticiário de política no Brasil para outras línguas.

Por exemplo, caro leitor. Vou propor a você um exercício. Tente traduzir para o inglês e para o francês a seguinte sentença: "Relator diz que CPI das sanguessugas não vai terminar em pizza".

Tente. A resposta estará na próxima edição de Lingua Franca. Não perca.

17 agosto 2006

O novo CD de Henri Salvador

O músico franco-brasileiro nascido na Guiana comemora 89 anos lançando um novo CD, com arranjos de Jaques Morelenbaum

Todo mundo lembra de Dans mon îsle, a linda canção de Henri Salvador gravada nos anos 80 por Caetano Veloso, certo? O músico, nascido na Guiana, mas que fez toda sua carreira na França, ao completar 89 anos, está terminando de gravar um novo CD. O trabalho tem a participação de Gil e Caetano, e uma nova versão de Dans mon îsle, desta vez cantada pelo próprio Henri Salvador, com arranjos do violoncelista e arranjador Jaquinho Morelenbaum.

Henri Salvador nasceu em 17 de julho de 1917 em Sinnamary, na Guiana Francesa, filho de pai de origem espanhola e mãe caribenha. A família se mudou para Paris em 1924, e ainda adolescente Henri descobriu a música através de Louis Armstrong e Duke Ellington.

Começava então a carreira de um compositor muito especial, exatamente pela mistura excêntrica de gênenros, do jazz à bossa nova, dos ritmos caribenhos ao blues, tudo devidamente acompanhado da melhor poesia francesa. Na França, fez parcerias com poetas de grande prestígio, como Boris Vian, e desde cedo criou laços estreitos com o cenário musical brasileiro. Seu maior sucesso no Brasil foi Dans mon île na voz de Caetano Veloso.

Ele gravou seu primeiro disco solo em 1947 e compôs diversas trilhas para o cinema. Em mais de 50 anos gravou dezenas de LPs, e recebeu dezenas de prêmios, se apresentando no mundo todo, mas principalmente na França. Ele e sua mulher, Jacqueline, criaram seu próprio selo de distribuição ainda em 1972. Com a morte de Jacqueline em 1976, Henri se ausentou por algum tempo dos palcos. Mas em 1982 já estva fazendo sucesso de novo, e em 1994 publica sua autobiografia Attention ma vie.

Em 2001 lançou Chambre avec vue, com o qual voltou a fezer grande sucesso depois de alguns anos de ostracismo, e em 2003 Ma chère et tendre. Em 2005 foi escolhido padrinho do Ano do Brasil na França, e se apresentou com Gilberto Gil para um público de 70 mil pessoas em Paris.

Em abril deste ano voltou mais uma vez ao Rio para começar as gravações do novo CD, em fase final de mixagem. Deixou suas mãos gravadas na Calçada da Fama, em Ipanema, e reencontrou outro músico franco-brasileiro, o produtor George Henry. Eles não se viam desde a Segunda Guerra Mundial, quando trabalharam juntos na Orquestra de Ray Ventura.

Tanto Chambre avec vue como Ma chère et tendre (leia resenha de Apoenan Rodrigues na Isto É) estão disponíveis na Amazon.com. E o site oficial do artista é www.henri-salvador.com

Dans mon île
(M. Pon - H. Salvador)

Dans mon île
Ah comme on est bien
Dans mon île
On n'fait jamais rien
On se dore au soleil
Qui nous caresse
Et l'on paresse
Sans songer à demain
Dans mon île
Ah comme il fait doux
Bien Tranquille
Près de ma doudou
Sous les grands cocotiers qui se balancent
En silence, nous rêvons de nous
Dans mon île
Un parfum d'amour
Se faufile
Dès la fin du jour
Elle accourt me tendant ses bras dociles
douces et fragiles
Dans ses plus beaux atours
Ses yeux brillent
Et ses cheveux bruns
S'eparpillent
Sur le sable fin
Et nous jouons au jeu d'Adam et Eve
Jeu facile
Qu'ils nous ont appris
Car mon île c'est le paradis

16 agosto 2006

O Brooklyn Museum

O Museu do Brooklyn é um dos maiores e mais antigos dos Estados Unidos.

Ele era o correspondente ao Metropolitan quando o Brooklyn era uma cidade independente. Quando se juntou à Nova York, foi ofuscado pelo Met.

Não que não tenha seus encantos. O acervo permanente tem nada menos do que a Mulher em cinza de Picasso. É que com o Met ninguém pode.

Mas há três anos ganhou uma reforma e tornou-se um museu bastante original, muito vivo e ligado à comunidade da região: o Brooklyn, o bairro onde Woody Allen nasceu, e que celebrizou em alguns de seus filmes, é conhecido pela sua diversidade étnica e cultural.




Ao contrário do Met e do Louvre, museus muito assediados por turistas (e que dá a eles um ar blasé, para não dizer entojado), o do Brooklyn é bem descontraído e amigável.

O museu tem mostras temporárias de altíssimo nível: recentemente estavam em cartaz uma de arte e objetos africanos e outra sobre o Egito antigo.

Veja as fotos do museu do Brooklyn.

05 agosto 2006

A new CD by Henri Salvador

The French-Brazilian composer will release a new CD

Henri Salvador was born in French Guyana but made all his career in France. Recently he recorded two CDs, Chambre avec vue e Ma chère et tendre, with great success (many of his records are available at Amazon.com). One of his many beautiful songs, Dans mon îsle, was recorded in 1981 by Caetano Veloso, the great Brazilian chanssonier, just to become an instant hit.

Henri Salvador, now 89 years-old, is finishing recording a new CD, produced and arranged by the great Brazilian musician Jaques Morelenbaum, who has already worked with Tom Jobim, Caetano Veloso and Ryichi Sakamoto. The CD will bring a fresh version of Dans mon îsle, chanted by Henri Salvador himself. It will also feature Caetano Veloso and Gilberto Gil. What follows is an English translation for the song (which I have also translated to Portuguese; see below).

In my Island
(M. Pon – H. Salvador)

In my island
Oh, it’s so cool
In my island
There’s nothing to do
But to lay on the beach
And be caressed by the sun
With laziness
And don’t care about a thing

On my island
Oh, it's so good
It's very peaceful
Close to my Doudou
Under the big coconut trees
That swing
We dream of us
In silence

On my island
A perfume of love
Secretly finds its way at sunset

And she gives me her sweet arms
Sweet and fragile

Among her beauties
Her bright eyes
And brown hair
Scattered over the thin sand

And we play of Adam and Eve
An easy game
That makes us so pleased

Because my island
Is the paradise

02 agosto 2006

Na minha ilha

Uma versão para Dans mon île

Uma versão bastante livre para Dans mon île, canção de Henri Salvador gravada por Caetano Veloso no início dos anos 80. O franco-brasileiro Henri Salvador, nascido na Guiana Francesa, que está com 89 anos, está gravando um novo CD produzido por Jaques Morelenbaum. Dans mon île, que é de 1957, está ganhando nova versão cantada pelo próprio compositor.

Na minha ilha
(M. Pon / H. Salvador)
(Versão de Caio Túlio Perônio)

Na minha ilha
Ah, como é bom
Na minha ilha
A gente se doura ao sol
Que nos acaricia
E a preguiça
Fica pra depois ...
Na minha ilha
Ah, como é doce
Fico em paz
Perto do meu amor
Sob os coqueiros
Que balançam
A gente sonha
Sonha em silêncio
Na minha ilha
Um perfume de amor
Se insinua
Ao pôr do sol
E ela me estende seus braços dóceis
Doces e frágeis
Ela é demais
Seus olhos brilham
E os cabelos castanhos
Se espalham
Pela areia fina
E brincamos de Adão e Eva
Jogo fácil
Que nos deixa meio ...
Sei lá
Pois minha ilha
É o paraíso.

31 julho 2006

O blog dos chefes

Presidentes de grandes corporações como Sun, IBM e General Motors já aderiram à nova mídia

O grande lance de 1448 foi uma tecnologia chamada ‘tipo móvel’ inventada por Johannes Gutenberg. Cinco séculos depois, o grande lance de 2001 foi o primeiro software de blog, o Movable Type, ainda hoje o mais usado pelos blogueiros profissionais.

As duas invenções foram igualmente revolucionárias. Quem diz é a Economist, a revista mais influente de economia e negócios do mundo no caderno especial A Survey of New Media. “O blog”, diz a revista, “talvez marque o início da transição para uma nova era: a era da mídia pessoal ou participativa”.

O blog é resultado de uma revolução dentro da revolução: nasceu do crescimento da internet de banda larga, que tornou mais fácil ‘carregar’ a rede (ou fazer o upload). Com isso, as pessoas passaram a criar conteúdo ao invés de apenas visitar sites com as quais não podem interagir.

Uma pesquisa recente revelou que 57% dos adolescentes americanos criam conteúdo para a rede, de texto a fotos, passando por música e vídeo. Isto mostra que as pessoas não se contentam mais em consumir mídia - querem participar dela.

Como o tipo móvel de Gutenberg, as conseqüências da nova revolução serão sentidas gradualmente, a longo prazo. A nova mídia participativa, diz David Sifry, fundador da Technorati, um mecanismo de busca de blogs, fez as fronteiras entre autores e audiência mais fluidas. O formato tradicional da palestra, ‘um-para-muitos’, torna-se mais uma conversação entre uma comunidade de iguais.

A maioria das pessoas não se dá conta de como é revolucionária esta mudança, diz David Weinberger, do Berkman Center for Internet and Society da Universidade de Harvard. “Transformar instituições em conversação é altamente revolucionário. Instituições são fechadas, pressupõe uma hierarquia, e dificilmente assumem o fato de que são falíveis. Conversas, por outro lado, são abertas, assumem a eqüidade entre as partes, e aceitam que cometem erros”.

Agora o blog está chegando às empresas. “Quer falar com o presidente da sua empresa?”, pergunta a revista Info de julho. “Abra o browser e acesse o blog dele”. Segundo a revista, o presidente de um banco estrangeiro instalado há poucos anos no Brasil fez isso em abril. Só no primeiro 'post', dando boas vindas aos funcionários, recebeu 400 comentários. CEOs de empresas como Sun, IBM, e General Motors já adotaram blogs para se comunicar de forma direta e interativa com funcionários.

Entre as que mais usam a nova mídia estão, como não poderia deixar de ser, as empresas de telecomunicações, entre elas a Nokia, uma das mais inovadoras empresas de tecnologia do planeta.

Mas o que é exatamente um blog, e afinal e porque ele é diferente de tudo o que você já viu na internet?

Não perca o próximo capítulo. Ou para usar a linguagem dos blogueiros, o próximo post.

13 julho 2006

Esqueça o CD

Uma coisa boa de se fazer quando se viaja é ouvir rádio. Em Nova York ouvi um programa sensacional: a Filarmônica de Nova York tocando ao vivo trilhas sonoras de Bernard Herrmann e John Williams para filmes de Alfred Hitchcock e Steven Spielberg. Narração de Martin Scorcese e do próprio Spielberg. Um programinha pra ninguém botar defeito.

Quem transmite toda semana os concertos da Filarmônica de Nova York é a WFMT (www.wfmt.com), uma rádio que resolveu aproveitar o renascimento deste meio de comunicação, causado, em parte, pelo sucesso das rádios satélite no Estados Unidos.

Mas o mais curioso é que os concertos da Filarmônica de NY estão fazendo muito sucesso também sabe onde? No iTunes, o serviço de música online da Apple. Os concertos da orquestra são gravados pela Deutsche Grammophone, editados e vendidos em CD. Mas o CD parece ser uma mídia alternativa, para o pessoal da velha guarda: o maior sucesso mesmo é o download digital no iTunes, onde os programas também são 'disponibilizados', para abusar mais uma vez do inevitável chavão. E os concertos da orquestra estiveram na lista dos programas mais baixados no começo do ano.

O download digital parece, portanto, que vai se tornando rapidamente o principal meio de comercialização de música, seja clássica ou popular. Para a indústria, significa uma solução nada mal: você fica só com a parte legal da coisa, a produção musical propriamente dita. E depois coloca os arquivos na internet. E esquece toda aquela parte chata: prensar as bolachinhas, as capas, colocar tudo dentro das caixinhas (sem esquecer da capinha de celofane), despachar para as lojas e, last but not least, correr o risco de amargar um tremendo mico porque o que o produtor achou que ia pegar não colou.

Com o download digital, baixa quem quiser, quando quiser, paga por download, e se for sucesso, valeu. Se não for sucesso, o produtor não amarga aquele milhão de discos plásticos sem nenhum outro uso a não ser, talvez, como bolacha de chopp.

Portanto, ao que tudo indica, pode começar a se despedir do CD: os seus dias estão contados.

29 junho 2006

A França não é um país sério

França e Brasil têm mais coisas em comum do que supõem os enciclopedistas

Entrou para a história como sendo do general Charles de Gaulle a célebre (e tão repetida) frase ‘o Brasil não é um país sério’. Pois a Wikipédia, a enciclopédia livre da internet, agora afirma que quem falou isso na verdade não foi o irrascível presidente francês, mas sim o então embaixador brasileiro Carlos Alves de Souza. O verbete esclarecendo tudo parece ter sido escrito por alguém muito por dentro da história, provavelmente o próprio Luiz Edgar de Andrade, correspondente do 'Jornal do Brasil' em Paris na época, e citado como o jornalista que ouviu a frase do embaixador brasileiro. Esta é a grande vantagem da Wikipédia: todo mundo colabora, não é escrita apenas por uma meia dúzia de enciclopedistas iluminados (ou iluministas?). (Veja o verbete de citações do general francês). Pra quem não se lembra, Luiz Edgar de Andrade foi um grande repórter, e que durante muito tempo publicou uma coluna no 'Pasquim' chamada 'Um pau-de-arara ao redor do mundo', onde o jornalista nascido no Ceará contava suas aventuras como correspondente estrangeiro. Aliás, por onde andará o Luiz Edgar de Andrade? Cartas para a redação.

Bem, depois de passar uns dias em Paris cheguei à conclusão de que a França também não é um país sério. Vejam só: em menos de uma semana peguei três grandes festas. Primeiro, a festa da música, que acontece todo ano, no dia 21 de junho: é um dia inteiro em que Paris é tomada por conjuntos, bandas e grupos tocando os mais diversos gêneros, do jazz ao rock, passando pelo clássico e pelo reggae, em um evento promovido pela prefeitura, e que tem a adesão entusiástica da população. Você dobra uma esquina, tem uma banda tocando Pink Floyd ou Deep Purple; vira a esquerda e tem uns malucos de pijama tocando jazz; ali na frente tem uma galera de trancinha no cabelo tocando reggae e fumando uns cigarros estranhos.

O curioso é que, apesar de todo nacionalismo francês, predomina a música americana: muito rock, pop e jazz. Vale lembrar que os franceses são fanáticos por jazz e gente como Miles Davis, Chet Baker e Dexter Gordon fizeram parte de suas carreiras na França. Há pelos menos duas ótimas rádios de jazz em Paris transmitindo em FM: a FIP (105,5 MHz) e a TSF (89,9 MHz). "Tout le jazz, tout les emotions", é o sugestivo bordão da TSF.

Depois peguei a Parada gay de Paris (leia abaixo).

E finalmente, a festa da vitória da seleção francesa. Era mais ou menos 11 da noite quando o jogo acabou. Até então Paris parecia São Paulo ou Rio em dia de jogo da seleção: pouquíssima gente na rua. A maioria vendo os jogos nos telões instalados em tudo quanto é café. Inclusive este que vos fala, que acompanhava tudo em um delicioso bistrô, perto da Bastilha. Há muitos restaurantes e bares na região, inclusive o Area, muito frequentado por brasileiros.

Quando o jogo acabou, a multidão enlouqueceu, e como acontece nestas ocasiões, tomaram a Bastilha. Alguns chegaram a invadir o famoso monumento, pulando a grade. A polícia chegou em minutos e quando parecia que ia dar confusão, foram embora: acho que perceberam que não ia adiantar; milhares de pessoas já tinham tomado o monumento e o largo, uma das vias mais importantes da cidade, virtualmente parando o trânsito, para desespero dos motoristas desavisados.

O mais divertido é que nessas ocasiões históricas sempre tem um casal se beijando romanticamente, como nos filmes. A multidão grita ‘Zizu, Zizu’, o apelido carinhoso de Zidane, o grande herói da partida. No metrô, dois franceses fazem o que parece ter se tornado a brincadeira favorita do momento: um imita uma tourada e o outro um galo, o símbolo da seleção francesa, zombando dos espanhóis. Aplausos da platéia improvisada na plataforma do outro lado dos trilhos. Senegaleses entusiasmados, com a camiseta azul e branca, entram no vagão do metrô gritando ‘vive la France’, ‘vive Senegal’, para felicidade geral da galera. Muita gente cantando ‘A marselhesa’. Enfim, Paris foi tomada por um carnaval, o terceiro em menos de uma semana.

Mas a França é parecida com o Brasil também por outro motivo: o ridículo dos seus políticos. O presidente Jacques Chirac apareceu na TV na terça-feira para apoiar mais uma vez o desmoralizado primeiro-ministro Dominique de Villepin. Foi ridicularizado por toda a imprensa, do Le Monde, ao Le Figaro, passando pelo Libération. Para muitos, já está mais do que na hora de Chirac pendurar as chuteiras. Aos 73 anos, em seu segundo mandato, Chirac vive um clima de ‘fin de règne’, e vem colecionando derrota sobre derrota: em maio de 2005 perdeu o plebiscito sobre a constituição européia, e teve de demitir o premiê Jean-Pierre Raffarin. Depois perdeu os jogos olímpicos de 2012 para Londres, enfrentou um levante nos subúrbios pobres a leste e ao sul de Paris, e a humilhante derrota da lei do emprego. Finalmente, veio o escândalo Airbus, cujo presidente da empresa vendeu ações na véspera de anunciar o atraso na produção do novo super-jumbo A380, o que fez as ações da companhia desabar.

Enfim, a França não é um país sério. E pensando bem, tem muita coisa em comum com o Brasil.

11 junho 2006

Vendo a copa em Salem, Massachusetts

Nosso repórter conseguiu assistir ao segundo tempo de Irã e México no bar do hotel. Mas não foi fácil

SALEM, MASSACHUSETTS, 11 de junho de 2006. Antes que alguém pense que vim pra cá com objetivos puramente consumistas, gostaria de esclarecer que o propósito da minha viagem é antes de tudo cultural: saber como é assistir a copa do mundo de um lugar bem diferente. Como, digamos, Salem, Massachusetts.

Enquanto em Nova York há bastante gente interessada nos jogos, em Salem, no coração da Nova Inglaterra, não é bem assim. Nova York é tão diversa do ponto de vista cultural e étnico que sempre tem algum café peruano, italiano ou thai onde a TV está mostrando jogo. Já aqui em Salem a TV do bar do hotel só fica no basebol. Hoje no almoço peguei Irã e México pela metade e quis saber como andava a coisa. “Tá bom o jogo?”, perguntei ao gerente. “Não vejo isso”, foi a sua displicente resposta, como se tratasse não de uma copa do mundo, mas de uma final do campeonato goiano. Ainda por cima, a TV estava sem som. Percebi que o momento era grave. Tinha que agir rápido. Protestei.

Felizmente o destino veio em minha ajuda. Um garçom mexicano apoiou e aumentamos o volume. Foi bem no momento em que o México virou o jogo, fazendo dois gols. Mas foi só acabar os 90 minutos e a TV voltou para o basebol. Reclamei de novo: será que não teríamos direito sequer aos melhores momentos da partida? Reprise dos gols? Comentários da Soninha? Pano verde? Nada. Direto para o basebol, esporte que jamais entendi: parece que tem mais ensebação que jogo propriamente dito. Eles ficam ali, ensaiado, ensaiando, a bola rola mesmo no máximo uns 5 minutos. E o lance mais emocionante é... quando a bola sai. Aí todo mundo fica ‘nuts’.

Por falar nisso, o Financial Times da semana passada trouxe um guia sobre como os chefes devem lidar com os subordinados durante a copa. Vale lembrar que o venerável jornal é publicado na Inglaterra, país onde as pessoas são normais, isto é, loucas por futebol. Segundo o jornal não vai adiantar proibir levar TV para o escritório. Esta é a primeira copa que está sendo integralmente transmitida através de streaming video na internet. Portanto, a maioria dos funcionários vai estar com os olhos grudados no computador, fingindo que está trabalhando. O colunista Jonathan Guthrie cita Roger Mosey, o diretor da esportes da BBC, para quem vai ser possível 'trabalhar e assistir ao mesmo tempo os passes da seleção alemã'. O colunista ironiza: 'Mr Mosey pode se submeter a uma equipe de neurocirurgiões cujos monitores estejam transmitindo cada lance de Estados Unidos e Tchecoslováquia. Eu não'. Em tempo: o artigo foi publicado antes do jogo em que EUA foram surrados pelos tchecos. Comentário da versão americana do Galvão Bueno na CBS News: 'Os americanos jamais vão se recuperar desta derrota'. Depois eu conto mais, inclusive como o jogo foi visto no Quincy Market, em Boston. Ou melhor, como não foi visto.

08 junho 2006

Um negócio de 499 dólares

Nosso repórter envia de Nova York a primeira de uma série de reportagens

NOVA YORK, 8 de junho de 2006 - A razão da minha vinda à Nova York é que resolvi comprar uma câmera digital nova para o meu FotoBlog. Era tempo: minha velha e surrada Sony P50 (dois megapixels) já deu o que tinha que dar. Pesquisando preços na internet descobri que a Sony W7 está por 250 dólares aqui nos Estados Unidos. Enquanto no Brasil... bem, achei por até 2 mil reais. Pensei que valia mais a pena vir pra cá, visitar minha amiga Gláucia, comprar a tal da W7, e aproveitar para rever amigos e a cidade onde morei dois anos, entre 1989 e 1991.

Cheguei hoje de manhã e fui logo comprando as coisas básicas. Primeiro, um guarda-chuva, já que o tempo está horrível. Depois, um novo cartão SIM para o meu celular GSM virar um pré-pago local. Então descubro que a TIM (também conhecida como ti-enganei) simplesmente 'trava' os aparelhos habilitados no Brasil, impedindo assim de usá-lo em outros países localmente, que é a grande vantagem do sistema GSM. Com o celular travado da TIM você tem de usar o caríssimo roaming internacional se quiser falar com o vizinho da esquina. Mas Dona Sima, a indiana da Wireless Shop, na Segunda Avenida com a 90, disse que ia dar um jeito. Deixei o meu com ela, e peguei um T-Mobile emprestado (é uma das operadoras GSM dos Estados Unidos). “Vou ter que fazer algumas mudanças no software”, disse Dona Sima.

Fui então atrás da tal da W7. Tanto na Circuit City como na Best Buy, duas mega cadeias de eletrônicos, sou informado que a W7 agora está em 'backlog'; quer dizer, só por encomenda. O fato é que a Sony não está dando conta da demanda; é preciso encomendar e aguardar pelos menos dois dias.

Então fui a B&H, a sucessora da antiga 47th Photo, a melhor loja de equipamento fotográfico de Nova York, aquela famosa dos judeus ortodoxos. Nada da W7. Que fazer, como diria Lênin. Há tantas alternativas hoje em dia que é difícil escolher. Felizmente, nós, brasileiros, temos uma vantagem: como o limite da alfândega é 500 dólares, já é um parâmetro. Enquanto nossas autoridades se preocupam com o problema de controlar os brasileiros para que não gastem mais do que 500 dólares em eletrônicos no exterior, empresas como a Sony estão aproveitando a febre das câmeras digitais e não dão conta da demanda de um modelo que já tem alguns anos. E vão espalhando fábricas por dezenas de países do Sudeste Asiático. Minha antiga P50 foi fabricada na Tailândia.

Acontece que há agora uma nova categoria de câmeras, intermediárias entre os modelos amadores (como a W7) e as SLR, as Single Lens Reflex, os modelos digitais que substituiram as Nikons e Pentax 35 milímetros de antigamente. As SLR digitais estavam custando bem mais de mil dólares, mas recentemente o preço começou a cair. Mas ainda não chegou aos 500 dólares, que é o máximo de tecnologia que um brasileiro comum pode ter.

Já a nova categoria intermediária (que vem sendo chamada de superzoom) está justamente na faixa dos 500 dólares. Elas têm uma série de recursos profissionais, boas lentes, 7 megapixels de definição, e um preço razoável. Li uma ótima resenha na revista Photography sobre a recém-lançada Sony H5 e descubro que está por 499 dólares na Circuit City (estava esgotada na B&H). Amanhã, depois de pegar meu celular devidamente destravado, vou na Circuit City buscar minha H5.

E, claro, vou guardar a nota fiscal com todo o respeito, para provar para as autoridades alfandegárias que sou um brasileiro zeloso do bom cumprimento da lei.

06 junho 2006

Encontros e desencontros

Existe alguma coisa mais intrinsecamente moderna do que um aeroporto? Pense no seu aeroporto preferido. Uma infinidade de sistemas tecnológicos funcionam ao mesmo tempo, 24 horas por dia: balcão de check in, cartão de embarque, segurança, vigilância eletrônica, sistemas de indexação, bancos de dados etc.

Por isso, o aeroporto é um ícone de sociedade moderna e tecnológica. Quem diz é Thomas Misa, do MIT, em um livro muito bom chamado Tecnologia e modernidade. Misa, um pensador interessado no impacto da tecnologia na sociedade contemporânea, lembra ainda outros componentes importantes e característios da moderidade que reinam nestes lugares: placas em inglês, alto grau de consiência do tempo, padrões globais.

Conscientes de como o avião tornou-se um ícone da modernidade, os futuristas italianos, estes precursores do modernismo estético, falavam em "estes maravilhosos aviões que furam o céu".

O aeroporto também pode ser pensado como um processo de produção altamente moderno onde, de um lado, entram passageiros, comida, bebidas, combustivel. Do outro, saem lixo, restos do lavatório... E claro, poluição.

Estes reflexões me vêm agora, em pleno Aeroporto de Guarulhos, onde batuco estas mal traçadas linhas antes de embarcar para Nova York, de onde estarei atualizando este blog na próxima semana.

Outra coisa que se pode fazer nos aeroportos atualmente é consultar a internet, e até atualizar um blog. Dá um pouco mais de sentido àqueles momentos indefiníveis de espera de um vôo, quando nos sentimos sozinhos e desolados como Bill Murhay em Encontros e desencontros, o genial filme de Sofia Copola.

Como símbolo da modernidade, o aeroporto nos faz sentir como seres anônimos nessa profusão de padrões globais, impessoais, altamente racionais (e atualmete um pouco paranóicos) que imperam nesses lugares.

A única coisa que foge do padrão global, e dá um tom prosaico à cena, é um paraguaio aqui atrás de mim, que berrando no microfone do skype, está fazendo toda a confirmação de sua viagem, em alto e bom espanhol, pra todo mundo ouvir. Pelo jeito, ele vai dar a volta ao mundo. Se não fosse por nós, latino-americanos, a modernidade seria muito monótona.

02 junho 2006

Depois daquele beijo

Pode ser que eu tenha assistido demais Depois daquele beijo, o título besta que mereceu por aqui Blow-Up, o filme de Michelangelo Antonioni de 1966. Revi recentemente em DVD, e ainda ‘impressiona’, como diz o lugar comum usado e abusado pela mídia. (Fala sério: depois do valerioduto, mensalão, do caso Suzane von Richthofen e dos famigerados irmãos Cravinhos, ainda tem alguma coisa que impressiona? Não seria a hora de passarmos para, sei lá, expressiona)? Checando na internet, lembro que é baseado em um conto do Julio Cortázar. Segundo o site do IMDB, o conto Las babas del diablo. Mas de qual livro? Não achei em nenhum dos que tenho do venerável escritor argentino.

O filme é sobre um fotógrafo bem sucedido e meio sádico, chamado Thomas (interpretado pelo já falecido David Hemmings). Ele resolve fazer umas fotos em um parque de Londres quando por acaso acaba flagrando um casal se beijando (as famosas cenas foram rodadas no Maryon Park, e não em Hampstead Heat, como reza a lenda).

O fotógrafo, como todo personagem de Antonioni, é um outsider, um anarquista que usa a câmera como uma espécie de arma pra praticar, vamos dizer, uma inútil subversão do mundo lá fora. Maltrata as modelos (as então famosérrimas Twiggy e Veruschka), e usa a câmera como se fosse, bem, lá vai mais lugar comum, símbolo fálico.

Ao fotografar o casal se beijando, Thomas invade, digamos assim, a intimidade da moça (Vanessa Redgrave). Hoje daria processo por assédio. Na época, foi um escândalo, criticadíssimo pela esquerda, para quem tudo não passava de existencialismo pequeno burguês. Ficou sendo a obra mais famosa do diretor italiano, mesmo que depois tenha feito obras primas como Profissão repórter, de 1975, com Jack Nicholson e Maria Schneider.

Ao ampliar e ver os detalhes com uma lupa, Thomas descobre que houve um crime atrás do casal que ele estava fotografando. Ao revê-lo hoje é curioso notar como as Nikons e Hasselblads, muito modernas para os anos 60, ficaram obsoletas: tudo substituído por câmera digital, Photoshop, computador, FotoBlog.

Bom, não sei se me deixei influenciar (vi tantas vezes, a primeira, ainda adolescente, no Bijou; curioso notar também como era ruim a projeção; Blow-Up, pasmem, é colorido!), mas desde que comecei a andar com a câmera digital, não consigo mais passar na frente de um parque sem fotografar.

O último foi o Parque Modernista, na Vila Mariana: quando vi, já estava lá, fotografando. A casa modernista, esta sim, expressiona.

01 junho 2006

A casa sem cor de Gregori Warchavchik

A casa sem cor de Gregori Warchavchik, por exemplo, expressiona. Pelo abandono, pelas ruínas em que deixaram se transformar um marco da arquitetura. Desde sempre ouço falar na casa modernista do famoso arquiteto nascido em Odessa, na Ucrânia, em 1896, e que foi responsável por vários projetos importantes. Entre eles as sedes dos clubes Paulistano, Pinheiros, Hebraica e Tietê, em São Paulo, do Iate Clube em Santos, e muitos outros. E principalmente, a sua célebre casa modernista, onde morou com a mulher, Mina Klabin. Como paulistano típico, nunca tinha ido.

Finalmente, em uma tarde de maio, fui conhecer. Como o fotógrafo de Antonioni, sempre armado com a minha câmera.

Warchavchik morreu em 1972, e desde então a casa está ao deus dará. Só sobrou o fantástico jardim que cerca a residência, que foi parcialmente restaurado. A casa está detonada, fechada para reforma, cercada de tapume por tudo quanto é lado. Mal dá pra ver a piscina, através de uma janela aberta na madeira. Mais precário que o zoológico de Niterói.

Em qualquer país menos dado ao desperdício, estaria lotado de turistas comparecendo firmes na bilheteria. Aqui, claro, estava ameaçado de virar shopping, quando foi tombado em 2004 pelo governo do Estado de São Paulo. Virou o Parque Modernista.

O jardim em volta da casa 'impressiona' com sua atmosfera e áura misteriosa. Mas a casa em si continua aguardando uma boa alma empresarial para ser restaurada. Lugar ideal para um fotógrafo existencialista passear (e fazer fotos...) Mas pensa que tinha muita gente? Meio deserto, a não ser por uma galera jovem, que ensaiava com uma filmadora digital. (Entre eles, a garota loira que aparece nas fotos). Talvez algum candidato a Antonioni.

Entendo, o estado tem suas prioridades: saúde, educação, segurança. (Aliás, deu pra ver o quanto tem sido investido em segurança ultimamente...) Mas e a iniciativa privada? O Instituto Moreira Sales, por exemplo, transformou a antiga casa da família, no bairro da Gávea, no Rio, em centro cultural. Fica lotado. Por que alguma empresa não investe na casa modernista de Warchavchik através das leis de incentivo fiscal? É retorno garantido.

No Natal do ano passado vi uma empresa de cartão de crédito fazendo um marketing pra lá de ridículo: botaram umas modelos passeando por aí, com sacolas de compra com o logo da empresa penduradas no ombro. Pareciam uns outdoors ambulantes. Por que não bancar a restauração da casa expressionista? Digo, modernista.

Veja as fotos do Parque Modernista.

29 maio 2006

Hoje tem circo? Tem, sim senhor!

Circo: tem coisa mais legal? O Circo-Escola Picadeiro deu uma canja na Praça das Jabuticabas, durante a Virada Cultural promovida pela prefeitura (veja as fotos). A Nossa Praça das Jabuticabas é um projeto muito interessante cujo objetivo é revitalizar uma praça do bairro da Aclimação, que estava abandonada.

Esta praça tem uma história curiosa: durante décadas foi a garagem da CMTC onde ficavam estacionados os trolebus da tradicional linha Cardoso de Almeida - Machado de Assis, que circula ainda hoje.




Nos anos 90 a garagem foi demolida e no lugar erguida uma praça, que ficou meio largada. No ano passado, o instituto A Casa, uma ONG ligada à saúde mental e psicossocial que funciona perto da praça, resolveu ‘adotá-la’. Hoje acontecem atividades durante os fins de semana, tais como oficinas de arte, capoeira, música e teatro para as crianças.

No final de semana retrasado a praça foi incluída pela primeira vez na Virada Cultural, com apoio da subprefeitura da Vila Mariana, e recebeu o Circo-Escola Picadeiro, uma galera da pesada.

Taí um bom exemplo de cidadania participativa.

(Veja as fotos do domingo de circo na Praça das Jabuticabas)

19 maio 2006

Na frente de batalha

Repórter penetra em área de segurança do quartel-general de organização criminosa

Fui enviado ao Shopping Iguatemi, notório ponto de encontro da perigosa facção criminosa conhecida como 'minoria branca', depois que o governador Cláudio Lembo encontrou os culpados pela violência em São Paulo.

Antes porém, zeloso dos meus deveres de bem informar ao público, fui na Internet conferir. No IBGE teen, o site educacional do IBGE destinado aos adolescentes, descobri que o governador cometeu uma imprecisão (um lapso gramatical, talvez): na verdade a 'minoria branca' é 52% da população brasileira.

Desfeito o mal entendido, fui ao Shopping Iguatemi fazer compras para passar por um típico consumidor da 'minoria branca': um bloco de notas e uma caneta na papelaria Info-Paper & Co, no piso térreo. E então, usando toda minha experiência de jornalista investigativo, tentei identificar qualquer vestígio de ação criminosa.

O experiente fotógrafo René Bresson, veterano de muitas coberturas jornalísticas internacionais (e ganhador de um prêmio Ipiranga de fotojornalismo) levou sua câmera-celular disfarçada de sapato e fotografou áreas de segurança máxima, como o estacionamento VIP.

Cláudio Lembo havia dito também à Folha de S. Paulo que 'a burguesia terá de abrir a bolsa'. Mas pude constatar que é só isso que eles fazem, governador. É um consumismo só: é um tal de pão de queijo recheado com requeijão e molho de azeitona, empadinha de palmito, tênis Nike, esfiha de carne, de queijo e de espinafre, TV de plasma pra assistir a copa, suco de acerola com laranja, camisa Lacoste, e o diabo a quatro.

E telefone celular, governador, muita gente comprando, trocando, fazendo upgrade para os novos modelos, cada vez mais modernos. Alguns fazem até conference call. Celular, governador, celular. Caiu a ficha?



Devido a importância do celular nos últimos acontecimentos, minha primeira suspeita mais séria recaiu sobre a Boutique dos Eletrônicos, no piso inferior, onde há anos compro tudo em matéria de acessórios para o computador. Marcelo, o vendedor, é muito bem informado em matéria de eltrônicos (foto). Se o senhor estiver precisando de um consultor em matéria de celular, governador, é com ele mesmo.

Prosseguindo na minha árdua missão, achei muito suspeito o bebedouro para cachorros no estacionamento VIP. E mais estranho ainda, apesar de lotado de seguranças, o René fotografou a vontade. Fingia que estava falando com alguém ao celular, ou que estava checando torpedos, e fotografava. Parecia o Maxwell Smart, o Agente 86, com a sua câmera disfarçada no sapato.

De repente percebi que tinha muita gente da 'minoria branca' falando ao celular com um ar levemente conspiratório. O que eles estariam tramando? Um café no quiosque do Viena? Um rodízio de pizza no Rascal? Cheesburger no América? Estariam em conference call com outros shoppings de São Paulo? Aí tem coisa, governador.

Depois de muito matutar cheguei a conclusão de que o líder da facção criminosa só pode ser o Joaquim, da barbearia Ringo, que sempre fala mal do governo quando corta o meu cabelo. Se eu fosse o senhor, governador, mandaria um jatinho da PM para negociar com ele.

E por via das dúvidas, mandaria bloquear o sinal do celular em todos os shoppings da capital.

(Veja fotos ultra secretas feitas com celular em áreas de segurança máxima dos Shoppings Iguatemi e Villa Lobos)