07 maio 2009

Questões candentes

"Açúcar ou adoçante?"
Decido, logo existo


Fui na padaria comprar café e açúcar - que Dona Maria não suporta adoçante. Na hora de passar pelo caixa, o inevitável: "Crédito ou débito?" Medito. Estou em dúvida. Penso longamente, pesando cuidadosamente os prós e contras, como aliás, sugere a filosofia analítica. Assumo um ar de imperador de busto romano e proclamo solenemente: "Cogito, ergo sum". A moça do caixa parece não entender: "O que é que é, sou moço?", pergunta ela, como se eu tivesse falado algo em grego. "Penso, logo existo", me apresso em traduzir, enquanto a fila se alonga e os fregueses começam a dar mostras de impaciência. "Descartes", vou logo explicando. "Em latim".

Mas a vida em São Paulo não está pra quem pratica o milenar exercício da dúvida. "Vai querer nota fiscal paulista?", insiste a moça. Não sei. Será? Tenho minhas dúvidas. Vejamos... "Não sei", respondo socraticamente. "Só sei que nada sei", digo com ar filosofal.

A fila aumenta. "Lugar de filosofia é na Grécia", diz um engraçadinho lá atrás, se aproveitando covardemente do anonimato. Resolvo dar um tempo. "Vou fazer um lanche ali no balcão, depois eu passo", explico para alívio de todos. "Assim é melhor, não é?", pergunto. "Com certeza", diz ela. Curioso: nunca houve tanta gente com tanta certeza, justamente num momento em que a filosofia, a física quântica e a psicanálise garantem que não há mais certezas neste mundo de Deus.

"Como está o peito de perú?", pergunto para o meu chapa da padaria. "Tá saindo bem, patrão". Será? Peito de perú e queijo branco? No pão francês? "Pode ser no pão de forma?", pergunto, já introduzindo, sorrateiramente, a dúvida, o desvio da norma, a subversão do padrão. "Sai um mineiro na chapa com peito de perú aqui pro meu amigo". Isso é prestígio. "E suco de abacaxi batido com hortelã e pouco gelo". Bom é ter tanta opção. Mas a escolha sempre traz em si a questão existencial da opção, da dúvida. Penso em Sartre. Lembro que no fim da vida ele sofreu de incontinência urinária. Justo alguém para quem a vida era era a arte de escolher. Sartre não podia mais decidir nem o "mijar ou não mijar?", esta dúvida existencial atávica, talvez a mais antiga da humanidade.

Encontro um amigo que perdeu todo dinheiro na bolsa e agora passa os dias na padaria discutindo futebol com o pessoal da chapa. "Como é que é?", digo a título de bom dia. "Vamos levando", diz ele sem muito entusiasmo. "Parece que a coisa vai melhorar", digo. "Será? Sei não. Desde que o Ben Madoff foi pego com a mão na botija...", afirma ele, reticente. "A gente não pode acreditar mais em ninguém..." Ele, pelo jeito, continua cheios de dúvidas. O que me leva a meditar sobre a crise econômica. E a China? E a gripe suína? Mas, divago. Do outro lado do balcão alguém me traz de volta à Terra e às questões mais candentes do nosso quotidiano. É seu Valmir, o palmeirense da chapa: "Açúcar ou adoçante?", pergunta ele. "Açúcar", afirmo depois de uma pequena titubeada inicial. Decido, logo existo.