19 junho 2008

A terceira margem de Copacabana

Guimarães Rosa, quem diria, viveu e morreu no Arpoador

O sertão de Minas em que Guimarães Rosa passou a primeira parte de sua vida já foi bastante celebrado. Mas pouco se sabe sobre a segunda metade de sua vida, dos anos passados em Hamburgo, entre 1938 e 1942, quando foi cônsul adjunto do Brasil, ao Rio de Janeiro onde viveu sempre ao lado da segunda mulher, Aracy, e onde morreu em 1967. Aracy, que acaba de completar 100 anos de idade, vive em São Paulo com o filho do primeiro casamento, Eduardo Tess. E mesmo sofrendo de Alzheimer avançado, continua cercada de homenagens.




Foi no apartamento no Arpoador que o casal recebeu personalidades do mundo literário e diplomático: o editor americano Alfred Knopf, o tradutor para o alemão Curt Meyer-Clason; o crítico Willi Bolle; o crítico nascido na Hungria e radicado no Brasil Paulo Rónai, entre outros. Foi no mesmo apartamento que ele foi encontrado pela neta e por Aracy caído sobre a escrivaninha, vítima de um enfarte, aos 59 anos, no auge da carreira.

O escritor tinha voltado ao Brasil definitivamente em 1951, depois de ocupar diversos cargos diplomáticos importantes no exterior, começando pelo consulado de Hamburgo, onde conheceu Aracy. Uma vez no Rio, moraram inicialmente no edifico Perigot, na praia do Russel, na Glória. Mas logo encontrariam um lugar mais adequado ao seu universo ficcional: o Edifício Ícaro, na rua Francisco Otaviano, no Arpoador.





Do outro lado do prédio fica o Forte de Copacabana, a ponta do Arpoador, e a Praia do Diabo, um costão de acesso restrito aos militares. Quando o casal viveu lá, nos anos 50, era quase desabitado. Uma espécie de terceira margem do Rio... O apartamento, que ocupa todo o quinto andar, tem uma vista magnífica para o mar.

Como tudo que cerca a vida do escritor, o prédio tem história. Foi a primeira construção ali, bem ao lado do Forte. Alegando que o edifício tornava a base alvo fácil para navios inimigos, os militares propuseram derrubá-lo. Mas então já moravam ali altas patentes do governo Vargas: o Brigadeiro Eduardo Gomes, o Marechal-do-ar Henrique Fontenelle, e seu sobrinho, o polêmico Coronel Américo Fontenelle, que depois viria a ser diretor de trânsito do Rio, e mais tarde, de São Paulo.



Apesar de cercado pelo mar, Guimarães Rosa não lhe dava muita bola: era bicho do mato, preferia o zoológico, em São Cristóvão, onde tinha o hábito de passar horas fazendo anotações sobre o comportamento dos animais em pequenos blocos de papel, muitas vezes ao lado de Aracy. Ia diariamente ao Palácio Rio Branco, onde funcionava o Itamaraty, e à livraria José Olympio, onde a nata da literatura e da vida intelectual carioca se reunia.

O casal tinha vida social intensa. O Rio ainda era a capital, e sede das embaixadas. Rosa, que falava dezenas de línguas, tinha em volta de si um mundo infinito de diversidade cultural. Quando não estava com diplomatas, críticos, editores ou tradutores, lia e escrevia, na companhia de Aracy, e dos seus inseparáveis gatos. Sempre no quinto andar do edifíco Ícaro.

Em 1964, quando veio o golpe, o casal quis esconder Franklin de Oliveira, o jornalista e crítico literário nascido no Maranhão e radicado no Rio que se tornara seu melhor amigo, e que estava sendo procurado pelos militares. É Franklin quem conta no prefácio da edição de 1988 do Grande Sertão. “Em 1964, quando começou a caça às bruxas, quis que fosse me asilar na casa dele. Recusei: poderia comprometê-lo e eu não tinha esse direito. Só quando viu que não me demoveria da minha decisão, organizou uma lista de embaixadas nas quais eu pudesse buscar o direito de asilo. Rosa praticava aquilo que os alemães chamam de ‘amizade combatente’. Atuava a favor do amigo, sem esperar que este lhe pedisse ajuda. E fazia tudo mineiramente: em silêncio”. O casal já havia feito isso na Alemanha, salvando judeus do nazismo, e Aracy viria a fazer de novo, em 1968, escondendo Geraldo Vandré dos militares.



No domingo, 19 de novembro de 1967, brincava com a neta, Vera Tess. Como fazia todo domingo, ela saiu com a avó Aracy para ir à missa ao final da tarde na capela do Forte de Copacabana. “Na volta para casa, eu levava pipoca para ele”, lembra Vera. “Naquele domingo, ao entrar no escritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha. Soube depois: estava tendo o enfarte”.

Um ano depois de sua morte veio o AI-5. Sabendo que Geraldo Vandré estava sendo procurado, Aracy praticou novamente a tal da “amizade combatente”: ofereceu-se para esconder o cantor e compositor, que com sua música Para não dizer que não falei das flores, havia irritado os militares. Vandré ficou escondido durante dois meses no apartamento, onde ironicamente via da janela a movimentação das tropas no Forte, subitamente transformado em presídio político. Como entre a rua e os fundos há um desnível, o quinto andar dá de frente para o quartel. Se Vandré cantasse alto, seria ouvido pelas tropas...



Aracy, não há dúvida, foi a grande companheira de Guimarães Rosa no período mais importante de sua vida, quando sua carreira ganhou fôlego e proporções internacionais. Em depoimento à revista Época, a filha do primeiro casamento, Wilma Guimarães Rosa, tentou vender a duvidosa versão de que Aracy foi apenas mais uma das “inúmeras amantes” de seu pai. É difícil de acreditar. Rosa era reservado, e ao freqüentar os mais altos escalões da política e da vida literária no país, se orgulhava de ter uma mulher como Aracy do seu lado.

Segundo a crítica Walnice Nogueira Galvão, uma das maiores especialistas na obra do mestre, Aracy era não só a companheira, como também a sua grande musa inspiradora. E não há uma única nota, informação ou mesmo fofoca sobre qualquer romance que Guimarães Rosa possa ter tido durante os trinta anos em que esteve ao lado de Aracy. Ao contrário, há centenas de fotos dos dois juntos. Em uma delas, tirada em uma homenagem no consulado alemão, provavelmente no início dos anos 60, ele aparece levantando o braço dela, como se dizendo: “É a ela que vocês devem homenagear”.


É difícil de acreditar também que alguém com a estatura de Aracy, que enfrentou o nazismo e as leis anti-semitas do Estado Novo se prestasse a um papel assim. Afinal, ela é a única mulher em um seleto grupo de 18 diplomatas e funcionários diplomáticos que fizeram algo pelos judeus durante o Holocausto. Como funcionária responsável pela seção de vistos do consulado em Hamburgo, conseguiu obter vistos para que judeus escapassem da Alemanha, contrariando as famosas “circulares secretas” de Getúlio. Por isso, tem uma placa em sua homenagem (ao lado de Souza Dantas, o então embaixador em Paris) no Museu do Holocausto, em Jerusalém. O fato de que ela não era diplomata de carreira, mas apenas uma funcionária, apenas aumenta o valor do seu gesto: ela não tinha imunidades diplomáticas, e se descoberta, provavelmente teria o mesmo fim de Olga Benário Prestes.


Além da estatura, Rosa e Aracy tinham em comum a tal da “amizade combatente”. Ao lado de Aracy, Guimarães Rosa encontrou um pedaço de sertão na zona sul do Rio de Janeiro: na terceira margem de Copacabana, cercado por capitães e coronéis, bem ao lado da Praia do Diabo.