16 abril 2007

Musa militante

Ela enfrentou – e driblou – três ditaduras, foi a mulher definitiva de um grande escritor , e escondeu Geraldo Vandré dos militares. Mas provavelmente você nunca ouviu falar dela. Seu nome: Aracy Guimarães Rosa

Diz o velho ditado que todo grande homem tem uma grande mulher por trás. Não é menos verdade o caso de João Guimarães Rosa, um de nossos maiores escritores. Só que no caso dele, a grande mulher ficou esquecida. Nada mais natural no caso de um autor cuja obra e biografia são cercados de mistério – e maus entendidos.


Guimarães Rosa casou-se duas vezes: a primeira, com Lygia Cabral Penna, em 1930, aos 22 anos de idade. Mas foi um casamento que durou pouco tempo, e acabou em separação: nada incomum hoje em dia, mas na época ainda um tabu. Ele ainda era um jovem médico em Minas Gerais, viajava pelo sertão colhendo material para seus livros, e prometia muito como escritor.

Mas foi só em 1938, quando já separado de Lygia, Rosa foi nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, que conheceu aquela que viria a ser sua segunda mulher, e companheira da vida madura: Aracy Moebius de Carvalho. Afinal, é com a nomeação para Hamburgo que começa, de fato, a carreira de João Guimarães Rosa como diplomata, escritor e personalidade de projeção mundial. Na diplomacia, encontrou a forma de ter tempo para viajar, aprender línguas, ler e escrever, suas grandes paixões. De 1938, até sua morte, em 1967, Aracy sempre esteve ao seu lado. Não é a toa que Grande Sertão: Veredas seja dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”, diz o escritor na epígrafe de sua obra-prima.

Mas Aracy foi uma mulher a frente do seu tempo não só por ter sido a companheira e inspiradora de um dos maiores escritores. Sozinha, por conta própria, e muitas vezes contra a vontade do marido, Aracy praticava o que os alemães chamam de “amizade combatente”: atuava em favor dos oprimidos.

Primeiro, foi durante a Alemanha nazista. Aracy, nascida no Brasil, acabara de se separar do seu primeiro marido, e fora morar com uma tia na Alemanha. Poliglota, culta, educada, conseguiu um cargo graduado no consulado brasileiro em Hamburgo: entre outras atribuições, era responsável pela seção de vistos.

Era a metade dos anos 30 e começava a lenta e inexorável ascensão do nazismo. Os nazistas decretaram que os judeus alemães tinham que abandonar o país (e ainda por cima pagar um “imposto de emigração”). Exatamente neste momento as portas começam a se fechar, uma atrás da outra. Getúlio Vargas, admirador de Hitler e Mussolini, determina aos consulados na Europa que sejam negados vistos aos judeus.

Contrariando as ordens de Getúlio e de seus superiores, Aracy 'dá um jeito' de burlar a atenção do cônsul-geral (que não era Guimarães Rosa; o escritor era cônsul-adjunto e não tinha nada que ver com a seção de vistos), e conceder vistos de entrada no Brasil para judeus desesperados para encontrar um refúgio. “Como minha mãe despachava outros assuntos, no meio dos papéis ela enfiava os vistos que o cônsul-geral assinava sem perceber”, lembra Eduardo Tess, filho do primeiro casamento de Aracy, e enteado de Guimarães Rosa. “Como cônsul-adjunto ele não era responsável pelos vistos, mas sabia o que minha mãe estava fazendo e a apoiava”.

A coragem de Aracy foi reconhecida pelo governo de Israel: ela é um dos 18 nomes citados no Museu de Holocausto em Jerusalém, como pertencentes a uma seleta minoria que arriscou a vida para salvar a de judeus perseguidos e que de outra forma teriam acabado em campos de extermínio – e a única mulher.

Além de uma placa no Museu do Holocausto em Jerusalém (o famoso Yad-Vashem, nome em hebraico), ela ainda foi homenageada com um bosque plantado em seu nome entre Tel Aviv e Haifa pelo Keren Kayemet, a sociedade ecológica de Israel. A própria Aracy participou da cerimônia com um discurso quando a placa comemorativa com seu nome foi inaugurada em 1985.

Os 18 diplomatas homenageados no Yad-Vashem passaram por uma triagem onde só foram considerados os que arriscaram suas vidas sem nenhum outro motivo que não a ajuda humanitária, e em casos comprovados por testemunhas e evidências. Segundo a página que cita Aracy no site do Museu, estes 18 diplomatas “salvaram a vida de dezenas de milhares de indivíduos, na maioria judeus”.


Em 1942, o Brasil rompe relações com os países do Eixo e os diplomatas brasileiros na Alemanha são mantidos sob custódia em Baden-Baden. “Ficamos num hotel e nos tratavam mais ou menos”, lembrou Aracy no documentário Os nomes do Rosa, dirigido por Pedro Bial. “Com a guerra, tinha pouca comida, e a gente também passou fome. Eu emagreci muito. Comia um prato de sopa, mais nada. Havia pessoas de todos os Consulados internadas. Foi um tempo duro”.

De volta ao Brasil, Rosa oficializa a separação com Lygia e casa-se (por procuração, no México, como era praxe antes da existência do divórcio no país) com Aracy. Ela, que não era funcionária de carreira do Itamaraty, é indicada para o consulado de Quito, no Equador, um prêmio dado a todos os funcionários que passaram as agruras do período nazista. Ela recusa e abdica da carreira diplomática para ficar ao lado do marido, que começa a publicar seus livros no Brasil e em traduções no exterior com enorme repercussão da crítica mundial.

O casal que inicialmente se instalara no Rio de Janeiro, na Praia do Russel, muda em agosto de 1952 para Copacabana. No célebre apartamento com vista para a praia do Arpoador, Guimarães Rosa reescreve interminavelmente seus livros e escreve aquela que seria considerada por muitos sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas.

O casal então recebe a elite literária da época, entre os quais editores, tradutores e críticos americanos, alemães e italianos que, apesar da enorme dificuldade envolvida na tradução de palavras como “nonada”, querem a obra de Guimarães Rosa publicada em suas línguas.

Vem o golpe militar de 1964. Começa a caça às bruxas. Franklin de Oliveira, célebre jornalista e crítico literário que se tornara amigo íntimo de Rosa é uma das vítimas. O casal se oferece para escondê-lo. Ele recusa: não quer colocar o amigo em risco.

1967. Guimarães Rosa finalmente toma posse da cadeira na Academia Brasileira de Letras para a qual tinha sido eleito anos antes, mas que, supersticioso, adiara sistematicamente. No domingo, 19 de novembro, três dias depois da posse, sofre um enfarte fatal.

1968. Um ano após a morte do escritor vem o AI-5. Aracy participa de reuniões de artistas e intelectuais contra a ditadura e fica sabendo que Geraldo Vandré, um dos artistas mais procurados pelos militares, está escondido precariamente na casa de um parente. “Um dia recebi um telefonema da governanta de Aracy”, diz a parente de Vandré, que prefere não se identificar. “Disse que se precisássemos de algo, estaria pronta a ajudar. Foi com um anjo que caiu do céu na hora certa”. Esta fonte, cuja entrevista gravei, diz não quer se identificar porque Vandré ficou transtornado com os acontecimentos da época e não quer mais que se fale no assunto. Ela, porém, fez questão de dar o depoimento, ainda que anônima, em homenagem a Aracy.

Geraldo Vandré ficou escondido dois meses no seu apartamento. Ironicamente, acompanhava a movimentação do exército em seu encalço, já que a janela do escritório onde Guimarães Rosa trabalhava tem vista para o Forte de Copacabana. Justo ele, que encarnara como ninguém a pujança do jagunço na canção popular, assistia toda perseguição dos novos coronéis no poder sentado na mesa onde tantas histórias de coronel e jagunço foram escritas.

A relação entre Guimarães Rosa e Aracy não é difícil de entender: Aracy era culta, bonita, falava diversas línguas, e além de tudo, era uma humanista radical. Enfrentou o nazismo, o Estado Novo de Getúlio e a ditadura militar brasileira nas suas versões light (1964) e hard core (1968).

Nesta semana, Aracy completa 99 anos. Vive com o filho Eduardo Tess e a nora, Beatriz em São Paulo, na rua Dr Melo Alves, por coincidência, bem perto de onde outro anjo rebelde viveu: Elis Regina. Por ironia do destino, quem tem tanto para contar, não lembra mais de nada: sua memória foi se apagando com o tempo. O mais grave, porém, é que a memória nacional parece ter esquecido dela. Seu nome foi pouco lembrado no ano passado quando se comemorou ou 50 anos da publicação de Grande Sertão: Veredas, a obra-prima de Guimarães Rosa. Que afinal, foi dedicado a ela.


Publicado, com modificações, na revista Cláudia, de abril de 2007 (ainda nas bancas).