10 fevereiro 2007

Os dez melhores livros de ciência

O que escritores como Primo Levi, Brecht e Stephen Pinker têm em comum? Eles estão entre os autores dos dez mais importantes livros de ciência já publicados, de acordo com uma centenária instituição inglesa

A tabela periódica, do escritor Primo Levi, foi escolhido como o melhor livro jamais publicado sobre algum assunto relacionado à ciência. Nele, seu terceiro conjunto de ensaios, na maior parte auto-biográficos, o químico judeu que sobreviveu a Auschwitz faz referência aos elementos da tabela periódica como metáfora para falar de suas raízes familiares, sua juventude na Itália, e da série de eventos dramáticos que o levaram da resistência anti-fascista a um campo de concentração na Polônia. Primio Levi morreu em 1987, ao cair da sacada de seu apartamento, em Turin, no que acredita-se que tenha sido suicídio. Ele encabeça uma lista publicada pela Royal Institution, centenária instituição científica, na qual ironicamente consta também Konrad Lorenz, o pai da etologia. Embora depois tenha se retratado, Lorenz foi filiado ao partido nazista. Constam também entre os campeões o roteirista Tom Stoppard e o biólogo Richard Dawkins.

O critério foi tanto científico como literário, já que cientistas dos séculos 19 e 20, além de dramaturgos e roteiristas, foram aclamados. Estão na lista, por exemplo, Stephen Pinker, o contemporâneo pioneiro da ciência cognitiva, autor do polêmico Tábula Rasa, e o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, por sua peça Vida de Galileu. Está lá também Darwin (pelo relato A viagem do Beagle e não pela Origem das espécies), e o Prêmio Nobel James Watson, descobridor do DNA (A dupla hélice).

Tom Stoppard, o roteirista de Shakespeare Apaixonado (Oscar de 1998), e do clássico Brazil, do ex-Monty Python Terry Gilliam, foi indicado por Arcadia, texto ainda inédito por aqui. Na peça, que convida o leitor a viajar no tempo entre os séculos 19 e 20, um grupo de personagens representa seus respectivos dramas. Stoppard explora temas como a natureza da verdade e do tempo, as diferenças entre o temperamento romântico e o moderno, e o papel confuso que o sexo ganhou no mundo de hoje.

Outro inédito é King Solomon’s Ring do zoologista, psicólogo e ornitologista Konrad Lorenz. Nascido em Viena, criador da etologia, a ciência que estuda o comportamento animal, Lorenz tem diversos livros publicados no Brasil (mas não este). O escritor John Turney, que presidiu o evento, jusitificou a escolha da seguinte forma: "It's the most charming book ever written by a Nazi" (traduzível por “o livro mais charmoso jamais escrito por um nazista”). Lorenz era filiado ao partido, e foi recrutado para a Wermacht em 1941. Embora quisesse servir como mecânico de motocicletas, foi designado médico do exército alemão. Por isso, amargou um período nos campos de prisioneiros da ex-União Soviética. Depois, já reconhecido por seu trabalho científico, ganhou o Prêmio Nobel, e desculpou-se publicamente pela mancha na biografia.

Gene Egoísta, de Richard Dawkins, publicado em 1976, aclamado como divisor de águas nas ciências comportamentais, foi diversas vezes publicado no Brasil. Dawkins também é etologista e biólogo. Nascido em Nairobi, é radicado na Inglaterra.

Oliver Sacks, o neurologista inglês radicado em Nova York, não ficou de fora. Descendente de uma nobre linhagem de neurologistas, professor do Albert Einstein College of Medicine, escritor de raro talento que fez sucesso no Brasil com Um antropólogo em Marte, foi classificado pelo seu Com uma perna só.

Entre os dez livros, três nunca foram publicados no Brasil, e dois estão fora de catálogo, inclusive Vida de Galileu. No que diz respeito às editoras, a Companhia das Letras é a única presente com mais de um título.

A seguir, os vencedores, com as edições em português, quando disponíveis:

Primo Levi – A tabela periódica (Relume Dumará, 2001)
Konrad Lorenz – King Solomon’s Ring
Tom Stoppard – Arcadia
Richard Dawkins – Gene Egoísta (Itatiaia, 2001)

Também se classificaram:

James Watson – A dupla hélice (Gradiva, 2003)
Bertolt Brecht –Vida de Galileu (Civilização Brasileira, 1978)
Peter Medewar – Pluto’s Republic
Charles Darwin – A viagem do Beagle
Stephen Pinker – Tábula Rasa (Companhia das Letras, 2004)
Oliver Sacks – Com uma perna só (Companhia das Letras, 2002)

Claro que o valor literário contou tanto quanto o conteúdo científico. Basta lembra desta cena inicial de Vida de Galileu (leia a seguir). Nela, Brecht faz um empolgante discurso a favor das luzes, da ciência e do conhecimento, contra a escuridão e as trevas.

Vida de Galileu

Bertolt Brecht

Primeira parte

Galileu Galilei, professor de matemática em Pádua, quer demonstrar o novo sistema copernicano do universo

Quarto de estudo de Galileu, em Pádua; o aspecto é pobre. É de manhã. O menino Andrea, filho da governanta, traz um copo de leite e um pão.

GALILEU (lavando o tórax, fungando alegre) - Ponha o leite na mesa, mas não feche os livros.

ANDREA - Seu Galileu, minha mãe disse que, se nós não pagarmos o leiteiro, ele vai dar um círculo em volta de nossa casa e não vai mais deixar o leite.

GALILEU - Está errado, Andrea; ele "descreve um círculo".

ANDREA - Como o senhor quiser, seu Galileu. Se nós não pagarmos, ele descreve um círculo.

GALILEU - Já o oficial de justiça, o seu Cambione, vem direto pra cima de nós, escolhendo qual percurso entre dois pontos?

ANDREA (rindo) - O mais curto.

GALILEU - Bom. Eu tenho uma coisa para você. Veja atrás dos mapas astronômicos.

Andrea pesca atrás dos mapas, de onde tira um grande modelo do sistema ptolomaico, feito de madeira.

ANDREA - O que é isso?

GALILEU – É um astrolábio; é para mostrar como as estrelas se movem à volta da Terra, segundo a opinião dos antigos.

[. . .]

ANDREA (move as esferas) - É bonito. Mas nós estamos fechados lá no meio.

GALILEU (se enxugando) - É, foi o que eu também senti, quando vi esta coisa pela primeira vez. Há mais gente que sente assim. (Joga a toalha a Andrea para que ele lhe esfregue as costas.) Muros e cascas, tudo parado! Há dois mil anos a humanidade acreditou que o Sol e as estrelas do céu giram em torno dela. O papa, os cardeais, os príncipes, os sábios, capitães, comerciantes, peixeiras e crianças de escola, todos achando que estão imóveis nessa bola de cristal. Mas agora nós vamos sair para fora, Andrea, para uma grande viagem. Porque o tempo antigo acabou, e agora é um tempo novo. Já faz cem anos que a humanidade está esperando alguma coisa.

As cidades são estreitas, e as cabeças também. Superstição e peste. Mas agora, veja o que se diz: se as coisas são assim, assim não vão ficar. Tudo se move, meu amigo. Gosto de pensar que tudo tenha começado com os navios. Desde que há memória, eles vinham se arrastando ao longo da costa, mas, de repente, deixaram a costa e exploraram os mares todos.

Em nosso velho continente nascia um boato: existem continentes novos. E agora que os nossos barcos navegam até lá, a risada é geral nos continentes. O que se diz é que o grande mar temido é uma lagoa pequena. E surgiu um grande gosto pela pesquisa da causa de todas as coisas: saber por que cai a pedra se a soltamos, e como sobe a pedra que arremessamos. Não há dias em que não se descubra alguma coisa. Até os velhos e os surdos puxam conversa para saber das últimas novidades.

Já se descobriu muita coisa, mas há mais coisas ainda que poderão ser descobertas. De modo que também as novas gerações têm o que fazer.

Em Siena, quando moço, vi uma discussão de cinco minutos sobre a melhor maneira de mover blocos de granito; em seguida, os pedreiros abandonaram uma técnica milenar e adotaram uma disposição nova e mais inteligente das cordas. Naquele lugar e naquele minuto fiquei sabendo: o tempo antigo passou, e agora é um tempo novo. Logo a humanidade terá uma idéia clara de sua casa, do corpo celeste que ela habita. O que está nos livros antigos não lhe basta mais.

Pois onde a fé teve mil anos de assento, sentou-se agora a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos livros -, mas agora nós queremos ver com nossos olhos.

As verdades mais consagradas são tratadas sem-cerimônia; o que era indubitável, agora é posto em dúvida. Em conseqüência, formou-se um vento que levanta as batinas brocadas dos príncipes e prelados, e põe à mostra pernas gordas e pernas de palito, pernas como as nossas pernas. Mostrou-se que os céus estavam vazios, o que causou uma alegre gargalhada.

Mas as águas da Terra fazem girar as novas roscas, e nos estaleiros, nas casas de cordame e de velame, quinhentas mãos se movem em conjunto, organizadas de maneira nova.

Predigo que a astronomia será comentada nos mercados, ainda em tempos de nossa vida. Mesmo os filhos das peixeiras quererão ir à escola. Pois os habitantes de nossas cidades, sequiosos de tudo que é novo, gostarão de uma astronomia nova, em que também a Terra se mova. O que constava é que as estrelas estão presas a uma esfera de cristal para que não caiam. Agora juntamos coragem, e deixamos que flutuem livremente, desancoradas e elas estão em grande viagem, como as nossas caravelas, desancoradas e em grande viagem.

E a Terra rola alegremente em volta do Sol, e as mercadoras de peixe, os comerciantes, os príncipes e os cardeais, e mesmo o papa, rolam com ela.

Uma noite bastou para que o universo perdesse o seu ponto central; na manhã seguinte, tinha uma infinidade deles. De modo que agora qualquer um pode ser visto como centro, ou nenhum. Subitamente há muito lugar. Nossos navios viajam longe. As nossas estrelas giram no espaço longínquo, e mesmo no jogo de xadrez, agora a torre atravessa o tabuleiro de lado a lado. Como diz o poeta: "Ó manhã de inícios!..."