Na margem do Rio, cercado de capitães e coronéis, com vista para a Praia do Diabo. Sabe quem morou lá?
Tudo foi surpreendente. A rua, que encontrei por acaso; depois, o edifício, que só conhecia de uma foto ainda de 1923, quando era o único naquele lugar. Hoje, ele mal aparece no meio de uma mini-selva de pedra plantada no Arpoador, entre Copacabana e Ipanema.
Era difícil de acreditar que aquele predinho de quatro andares, com seu jeito tímido que só esses edifícios antigos tem, fosse o lugar onde ele viveu os anos mais importantes da sua vida, sempre ao lado da segunda mulher.
Só quando atravessei a rua, tive certeza: foi ali mesmo, mas não no da frente e sim no prédio de trás, que agora fica escondido. Foi lá que ele viveu, recebeu a elite literária internacional da época, escreveu sua obra-prima, e morreu, aos 59 anos, no áuge do sucesso e do prestígio.
É preciso um esforço de abstração, apagando os horrendos prédios vizinhos, principalmente o bingo da direita, mas também a garagem de carros da esquerda, para entender o lugar. Na época, não havia nada, apenas o Edifício Ícaro, bem ali na rua Francisco Otaviano, 33. De um lado, Ipanema, então uma praia deserta. Do outro Copacabana, o Forte em primeiro plano. Era, com alguma licença poética, a própria terceira margem do Rio.
Com a câmera digital na mão atravesso a rua, chamo o porteiro, e pergunto: “Foi aqui que morou Guimarães Rosa?”
“Foi, sim senhor”.
A grade de alumínio está fechada. Sabe como é, o Rio mudou. “Será que eu poderia entrar pra fazer uma foto? Só da fachada”. Não, não posso. “Só com autorização do síndico, e ele não está”.
Calculo que o espaço entre as barras da grade é suficiente para passar a lente da máquina. E usando o zoom, poderia tirar uma foto dali mesmo. “E se eu fizer uma foto daqui?”, arrisco. Com ar cúmplice, e aquele jeito bem carioca, ele olha pros lados, e diz : “Daí, não estou nem lhe vendo”.
Depois, experimentei outros ângulos: do outro lado da rua, em frente do Shopping Cassino Atlântico... Do lado direito, em frente ao... bingo...
O Arpoador mudou muito desde os tempos que ele andou por lá. Nos anos 80 tornou-se ponto de hippies e surfistas, e agora há dezenas de lojas de pranchas e bermudas e acessórios e tudo o mais exibindo posters de Bob Marley, Peter Tosh e Che Guevara.
A ponta do Arpoador tem uma posição estratégica. Ali os militares construíram em 1916 o Forte de Copacabana. Até muito recentemente, era fechado ao público. (Em 68 "abrigou" presos do regime militar. O Ziraldo passou um mês lá). Só nos anos 90 foi aberto para nós, civis.
Enquanto fotografava o prédio, um garagista do bingo, vendo o que parecia um turista desavisado registrando um prédio antigo sem qualquer atração, apontou para o outro lado, onde estaria a suposta coqueluche turística do Rio de hoje. “Favela, favela”, dizia apontando o Morro do Pavão na direção da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
“Obrigado, merrmão”, respondi no meu melhor carioquês. “Mas tu sabe quem morou aqui?”, desafiei. “Não, quem?”, ele perguntou, pego de surpresa. “Um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos: João Guimarães Rosa”. O turista conhecia um segredo do Rio. Não há pior humilhação para um carioca. “Mas brasileiro não dá valor pras suas coisas mesmo, né?”, justificou.
O prédio, como tudo que cerca a vida do escritor, tem história. Foi o primeiro construdio ali, bem atrás do Forte, ainda no início dos anos 20. Sob a alegação de que era visível de longe, e tornaria o Forte um alvo fácil, os militares quiseram derrubá-lo. Mas então ele já abrigava figuras como o Brigadeiro Eduardo Gomes, o Marechal-do-ar Henrique Fontenelle, e seu sobrinho, o polêmico Coronel Américo Fontenelle, que depois viria a ser diretor de trânsito primeiro no Rio, e depois em São Paulo. Com tanta gente importante, o edifício foi poupado por Getúlio.
Guimarães Rosa e sua segunda mulher, Dona Aracy, mudaram-se para lá no início dos anos 50.
Como se sabe, depois de entrar para o Itamaraty, Guimarães Rosa havia sido nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo em 1938. Ali, já separado da primeira mulher, conheceu Aracy, com quem conviveria nos próximos 30 anos, até a sua morte. (Casaram-se por procuração no México, como era de praxe, já que no Brasil ainda não havia divórcio. Dona Aracy, hoje com 99 anos, mora em São Paulo, com o filho do primeiro casamento, Eduardo Tess, e a nora).
Voltaram para o Brasil em 1942, quando o país rompeu relações com a Alemanha. Depois de várias andanças internacionais, Rosa e a mulher se instalaram no apartamento da Francisco Otaviano. Foi lá que ele escreveu Grande Sertão: Veredas. Foi lá que discutiu com editores do mundo todo as traduções para dezenas de línguas.
Bem roseanamente, a parte de trás do edifício dá para a Praia do Diabo, um costão que só é acessível através do Forte de Copacabana. Máquina em punho, vou para lá, atrás do edifício. É onde ficava o seu gabinete de trabalho. Dali, o escritor tinha uma vista magnífica: o mar era visível de todos os lados.
Mas no meio do caminho tinha um Opala velho, e dois soldados tentando consertar, sem grande sucesso. Deduzi isso, porque chutavam e xingavam a sucata, reclamando da falta de peças. Quando me viu um dos soldados ficou genuinamente surpreso. “Onde o senhor pensa que vai?”, perguntou. No meu afã de fotografar o escritório onde Guimarães Rosa escreveu histórias de jagunços e coronéis, não percebi que havia invadido uma área militar. Usando novamente o idioma local, tentei conversar: “Olha só, merrmão: sabe quem morou ali?” Ele não estava pra conversa. “Não sei e não quero saber. Aqui só entra com autorização do capitão”.
Ao invés de falar com o capitão, fui pro outro lado, atravessando o bem mais amistoso parque Garota de Ipanema, até a Praça do Arpoador.
Da pequena praia do Arpoador, entre surfistas e pescadores, fotografei o gabinete de trabalho onde Guimarães Rosa morreu, de enfarte, em 19 de novembro de 1967. Foi encontrado caído sobre a mesa de trabalho pela neta, Vera Tess, e Dona Aracy. Para enorme surpresa dos surfistas - que achavam no mínimo curioso que alguém estivesse ali curtindo algum outro tipo de onda. Tipo, o apê do João.
Quando Rosa morreu, nem Carlos Drummond de Andrade acreditou: “Ficamos sem saber se João existiu, de se pegar”. Mas o prédio onde ele morou está lá. Não peguei, mas fotografei. Escondido em um dos lugares mais especiais da cidade maravilhosa, cercado por capitães e coronéis, tendo como vizinho a Praia do Diabo, Guimarães Rosa achou o seu grande sertão em plena zona sul do Rio de Janeiro.
(Veja as fotos do Edifício Ícaro no FotoBlog).