Ao se comemorar os 200 anos da abolição do comércio de escravos no Império Britânico, ainda falta muito para que possamos compreender em toda sua dimensão o período de quatro séculos no qual a escravidão e a navegação estiveram intrinsecamente ligadas à colonização das Américas. Em 25 de março de 1807, depois de vinte anos de campanha abolicionista, o Parlamento inglês decretou a ilegalidade do comércio de escravos, um ato que teria conseqüências fundamentais do outro lado do Atlântico. A partir de então, ao longo de uma série de medidas destinadas a extinguir o comércio, e depois a própria escravidão, a Inglaterra passou a reprimir o tráfico praticado por outras potências. O que fora parte integral da relação entre colônias americanas e suas metrópoles européias entre os séculos 15 e 19 começou lentamente a ser visto como uma aberração.
Nos últimos anos muito se pesquisou sobre a escravidão, esta instituição que marcou de forma tão profunda as colônias do Novo Mundo, e de forma particular, o Brasil. Um marco nessa historiografia é o recém-publicado Inhuman Bondage: The Rise and Fall of Slavery in the New World (Oxford University Press, 2006). O autor, diretor do Instituto de Estudos de Escravidão, Resistência e Abolição da Universidade de Yale, reuniu muito do que se produziu nas últimas décadas para compor um quadro panorâmico desta instituição tão profundamente ligada às nossas raízes.
Brion Davis mostra como o conceito de escravidão tem origens na Antiguidade e de alguma forma perpassa todas as grandes religiões. Mas foi com o “comércio triangular” através do qual os navios europeus exportavam artigos manufaturados (roupas, armas, objetos de metal) em troca de escravos, e estes por produtos naturais (açúcar, prata, madeira, café), fazendo uma navegação circular entre Europa, África e América, que fez com que o os africanos se tornassem integrais à história do Novo Mundo. O processo pode hoje ser visto, em retrospecto, como a primeira grande onda de globalização.
Por volta da metade do século 18, não só ingleses, mas franceses, portugueses, espanhóis, enfim, todos os grandes impérios da época enriqueciam com o “comércio triangular”. O maior império escravista, no entanto, era o inglês. Como lembra Brion Davis, “o comércio escravista, e seus desdobramentos, foram uma imensa fonte de riqueza e poder para a Inglaterra”. Dadas as suas proporções, é notável que a campanha abolicionista, que começou em 1787, tenha alcançado sucesso em apenas vinte anos.
A Inglaterra não era o único império escravista, mas seu inigualável poder marítimo fazia com que a escravidão nas suas colônias fosse um caso único em termos de alcance, tamanho e interação com outras instituições sociais e políticas - relação esta que era constantemente transformada e adaptada.
O começo do século 19 assistiu a uma enorme mudança de escala e natureza desta interação. Não se tratou de fenômeno isolado, mas parte de uma série de transformações que forjaram o nascimento do mundo moderno. Esta era turbulenta, caracterizada por forças contraditórias (revolução e reação, liberdade e imperialismo, guerra e paz, iluminismo e escravidão) teve como uma de suas consequências fazer com que as relações políticas e econômicas da Inglaterra com as colônias fossem sacudidas. E inaugurasse uma nova era na história do Novo Mundo.
Mas muitas perguntas ainda estão sem resposta. Qual foi, por exemplo, a dimensão exata desta migração forçada, o primeiro grande movimento populacional da história? As estimativas variam. Os historiadores hoje concordam que algo entre 11 e 12 milhões de africanos foram transportados através do Atlântico, entre os séculos 15 e 19, nas condições mais desumanas possíveis. Mas há quem chegue até os 20 milhões.
Quantos morreram na travessia, em uma época em que se calcula que um em cada cinco navios que tentavam atravessar o Oceano naufragavam?
O que se sabe é que o Brasil foi o segundo maior destino de africanos, perdendo apenas para as ilhas do Caribe, incluindo Cuba. Entre 1820 e 1880, quando a Inglaterra já tinha declarado o comércio ilegal, e ameaçava afundar qualquer navio transportando escravos através do Atlântico, mais de dois milhões foram trazidos para o Brasil e para Cuba. A mortalidade era tão alta que se fazia necessário um fluxo constante, apenas para manter o estoque existente.
Embora muitos lucrassem com o comércio escravista, na maior parte os europeus sequer sabiam de sua existência. Na própria Inglaterra não havia escravidão; portanto, não havia razão para os ingleses lidarem com esta verdade inconveniente.
O meio pelo qual o açúcar chegava às mesas européias era cuidadosamente escondido através de eufemismos: não havia tráfico, mas sim “aventuras na África”. Por trás das aparências, no entanto, começou a correr um sentimento que algo estava errado. Principalmente ao alvorecer das luzes, a partir do momento que começava a ganhar influência cada vez maior o iluminismo, com sua promessa de pautar a ação humana pela razão.
O sentimento de culpa provou ser o tendão de Aquiles do tráfico de escravos. O objetivo que os abolicionistas colocaram para si mesmos foi o de expor a sua realidade ao público ignorante da sua existência. O senso moral das pessoas faria o resto. Afinal, era o tempo das luzes, das novas idéias a respeito da sociedade, da política e dos direitos.
Mesmo que embasado no espírito de uma época, movimentos sociais exigem líderes convictos. Na Inglaterra, entre os pioneiros estavam os nomes de Granville Sharp, Thomas Clarkson, e William Wilberforce. Foi Clarkson quem, em 1787 – dois anos antes da Revolução Francesa – fundou a Sociedade pela Abolição da Escravidão. Como parte de sua campanha, ele e seus companheiros imprimiram e espalharam pela Inglaterra centenas de cartazes com os famosos diagramas dos navios negreiros, mostrando as condições como eram transportados. Estes diagramas tornaram-se ícones da causa abolicionista: ninguém mais poderia negar os horrores do tráfico. (Os aqui reproduzidos são de Descrição de um navio negreiro, de James Philips, Londres, 1789; em exibição no Peabody-Essex Museum de Salem, Massachusetts).
É claro que as revoltas de escravos desempenharam um papel igualmente importante. As rebeliões, juntamente com o movimento abolicionista, em meio a uma época em que se questionou profundamente todas as tradições do passado, causaram uma revolução do lado de cá do Atlântico.
Clarkson organizou também o que talvez tenha sido o primeiro boicote a um bem de consumo: o boicote ao açúcar, promovido para que os ingleses percebessem a crueldade do que estava por trás do cristal branco que combinava tão bem com o seu chá. 300 mil pessoas aderiram ao boicote, que tinha o objetivo de prejudicar os proprietários de plantações. E inspirou o movimento parlamentar, que apresentou várias propostas contra o comércio de escravos, até que uma delas foi finalmente aprovada, em duas votações, a segunda e definitiva em 25 de março de 1807, há exatos duzentos anos.